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Travelog 2: sobre camisetas, pernas ocultadas e clérigos xiitas

Carmen Rial (UFSC/INCT Futebol)


No texto abaixo, a autora relata suas descobertas em torno das relações entre o futebol, sujeitos e lugares encontrados em Istambul, na Turquia, e em Doha, no Qatar, em sua passagem recente pelas cidades.


As camisas de futebol são um produto de destaque nos mercados de Istanbul. Foto: Carmen Rial
As camisas de futebol são um produto de destaque nos mercados de Istanbul. Foto: Carmen Rial

Torcedor de clube x torcedor de futebolista?


Como sabemos, a gentrificação dos estádios, transformados em arenas, e o aprofundamento da mercantilização do futebol tiveram um impacto grande nas identidades dos espectadores. Com a entrada na era neoliberal, a crescente presença do futebol no mediascape impulsionou a ascensão dos clubes globais, transformando a geografia das emoções. O público apaixonado, disposto a roer as unhas pelo time local com o qual se identifica fortemente, ainda existe, mas hoje divide espaço com um torcedor mais fleumático – interessado em selfies, Lay’s e cerveja tanto quanto nos passes e chutes dos jogadores do seu time.


Poderíamos distinguir, simplificadamente, de um lado, os torcedores tradicionais, que se veem como sócios do clube – uma identidade enraizada no vínculo recíproco e inquebrantável entre torcedor e instituição – e, de outro, os consumidores, cujas lealdades são mais frágeis. Para estes últimos, a relação com o clube é relativamente mais instrumental: querem sobretudo vitórias e podem mudar de time ou acompanhar aqueles que oferecem resultados positivos.

Considero particularmente útil a classificação proposta pelo sociólogo britânico Richard Giulianotti (2002), pois ela fornece maior clareza e estrutura. O autor distingue entre: 


  • Supporters (torcedores): caracterizados por solidariedade densa, identidade enraizada e relações subculturais;

  • Fans: cuja identidade é marcada, mas mediada pelo produto e com menor intensidade;

  • Consumers (consumidores), subdivididos em Followers e Flâneurs: relações virtuais, identidade cosmopolita e solidariedade tênue.


O importante aqui é compreender que essas categorias não funcionam como caixas rígidas, mas como pontos em um continuum de identidades torcedoras. Esse continuum evidencia diferentes graus de envolvimento emocional com os clubes, que vão de laços profundamente enraizados até formas mais ocasionais, instrumentais ou mesmo estéticas de apego.


Há uma frase no artigo de Giulianotti (2002) que aponta para a possibilidade de torcedores deixarem de ser fiéis a um clube para o ser a um atleta em particular. Ele não desenvolveu a ideia, mas ela está lá, e essa é uma tendência que vejo ocorrer com cada vez maior frequência: torcedores de Messi, de Cristiano Ronaldo, de Neymar. Seguidores nas suas redes sociais – estão entre os maiores “influencers” do mundo – mas também seguidores dos clubes por onde andam pelo planeta. Pois bem, esses torcedores têm agora uma camiseta que cristaliza sua paixão, num bric-à-brac de diferentes clubes por onde rodaram, com escudos irmanados e igualizados, pois o que conta realmente é o nome do jogador. O habitus (no sentido originário de vestimenta mais do que na sua acepção maussiana ou bourdiana) revela essa tendencia. Sporting, Manchester United, Real Madrid, Juventus, Al-Nassr e seleção de Portugal, ainda que tenham grandes diferenças, ocupando lugares díspares no sistema futebolístico, têm o mesmo espaço na geografia têxtil, pois o que conta mesmo é o nome Cristiano Ronaldo.  

Proximidades do Büyük Çarşı (grande bazar) de Istambul. Foto: Carmen Rial
Proximidades do Büyük Çarşı (grande bazar) de Istambul. Foto: Carmen Rial

Mercado (souk) de Doha. Foto: Carmen Rial
Mercado (souk) de Doha. Foto: Carmen Rial

Nadadoras invisíveis


Falo com Ayça Çapanoglu, estudante de graduação de Sociologia da Universidade Galatasaray, que me conta que fez parte da equipe nacional de natação ornamental por anos. Ela nadava com trajes de banho habituais, com maiôs comuns às nadadoras no mundo. Mas suas performances eram seguidamente censuradas na mídia turca porque expunham seus corpos. Alguns canais de TV (principalmente os de propriedade do governo) não compartilham as notícias das competições, que ficam restritas às publicações da Federação de Natação em seus sites e contas do Instagram.


Para aparecer nos jornais, me conta Ayça, elas tinham que usar calças e mangas compridas. A Turquia, como sabemos, é um país secular, mas onde os conservadores no poder estão ganhando influência em muitos setores. Quando é inevitável – por exemplo, em notícias de vitórias no vôlei ou no basquete –, alguns jornais costumam censurar partes do corpo expostas. Mas é diferente quando as equipes são estrangeiras: para elas não há censura. Após cinco anos de decepção, Ayça deixou a equipe.


O touro atingiu a seleção nacional e a censura às pernas das sultanas

Banca de jornal em Eminönü, bairro central de Istambul. Foto: Carmen Rial
Banca de jornal em Eminönü, bairro central de Istambul. Foto: Carmen Rial

Milliere boga carpti” (“O touro atingiu a seleção nacional”) foi uma das manchetes do jornal Sabah (Manhã) no dia seguinte à derrota da Turquia de 6 a 0 para a seleção da Espanha, jogo transmitido em cadeia aberta na TV turca e que pude assistir. Ela contrasta com outro título acima, em que se lê “Türkiye sizinle gurur duyuyor” (“A Turquia está orgulhosa de si”) e que mostra uma foto das atletas vencedoras em seus uniformes, pernas à amostra – o que não é pouca coisa, pois os jornais conservadoras costumam censurar a exposição de suas pernas, como se vê no jornal FotoMaç (foto da direita), que estrategicamente coloca a manchete “Gönlümüzün Sultanları” (“As Sultanas Invencíveis”) de modo a esconder suas pernas ao saudar a vitória das mulheres da seleção turca de basquete – comumente chamadas de “sultanas”. O presidente ultraconservador merece destaque na notícia: “Başkan Erdoğan'dan tebrik” (“Parabéns do Presidente Erdoğan”). FotoMaç tem uma palavra para descrever o jogo da seleção de futebol também apocalíptica, “Facia!” (“Desastre!”), acompanhada pela imagem do seu jogador mais famoso atualmente, o Arda Güler (Real Madrid), com a mão nos olhos.


Mulheres sauditas nos estádios


Cristhian Caje e eu tínhamos acabado de apresentar um paper sobre o ativismo político no futebol, mostrando imagens do filme The Football Aficionado (2022), dirigido por Sharmin Mojtahedzadeh e Paliz Khoshdel. Tomado como ponto de partida para refletirmos sobre a interseção entre futebol e ativismo, o filme acompanha Zahra Khoshnawaz, uma ativista que lidera o movimento iraniano pelo acesso das mulheres aos estádios de futebol. A obra destaca as estratégias duplas empregadas pelas mulheres para enfrentar as restrições – disfarçando-se de homens para entrar nos estádios e confrontando diretamente as forças de segurança nos portões. Embora esses esforços tenham enfrentado barreiras significativas, o movimento ganhou impulso quando a FIFA interveio, desencadeando solidariedade entre torcedores homens que se recusaram a entrar nos estádios sem a presença das torcedoras. Mostramos também outras imagens, captadas no YouTube, que revelam o ativismo político de torcedoras no Irã, na Argentina e no Brasil.


Na pausa para o café, converso com uma colega antropóloga sueca com longo trabalho de campo no Egito e na Arábia Saudita. Ela elogiou a apresentação e nos contou, à guisa de nos dar novos elementos, sobre como as mulheres sauditas podem agora entrar no estádio. Me interessei particularmente por sua própria experiência indo ao estádio com amigas. “Nós sentamos em meio aos homens”, me diz, como se fosse (e é) algo excepcional. Ela conta que, nos estádios, conversam sobre o jogo: “Eles nos explicam quem é quem. Eu me vi conversando com homens que nunca tinha visto na vida!” Pergunto sobre a roupa. “Algumas com véu, outras sem, mulheres sauditas raramente tiram completamente o véu”, me esclarece. Ela mesma foi com um casaco longo, mas que era “mais uma túnica tipo hippie com jeans”. E completa generalizando a experiência: “É impressionante como o futebol atuou abrindo a sociedade. Agora, as mulheres viajam para o Egito, muitas sozinhas. Seria impensável há alguns anos.”


No passado


Reparo com frequência nas vendas de camisetas nas ruas por onde ando, pois sinalizam bem a popularidade de jogadores e clubes. Lembro que, na primeira vez em que estive na Turquia, em 1997, as de Ronaldinho Gaúcho eram encontradas por todos os lados, ficando as de Ronaldo Fenômeno em segundo lugar, mas também recorrentes. Na visita recente que fiz, as camisetas de futebol continuam assíduas ao redor dos locais de visitação turística, misturando clubes de diferentes ligas, numa salada semelhante à de alguns camelódromos brasileiros. Mas, desta vez, as de brasileiros... nem a do goleador da última edição da Champions, Raphinha, se encontrava, seja nas ruas estreitas que cercam o Grand Bazaar, seja nos arredores do Mercado Egípcio de especiarias.


Garimpando bem, entre as expostas, vi a de Neymar, que aparece ainda que de modo mais raro do que a de ídolos atuais, como Lamine Yamal, Palmer ou Mbappé. Mas as que predominam entre os brasileiros nos remetem ao passado: encontro o nome de Ronaldinho, ainda que sem a mesma frequência de anos atrás, gravado tanto nas camisetas do Barcelona quanto nas da seleção. E até uma do Pelé achei. Cacei as de Alisson e Ederson em camisetas dos seus clubes – sinal dos tempos, são as dos goleiros brasileiros as que estão colocadas à venda. Ou seja, atualmente, a contar pelas camisetas de futebol vendidas em Istambul, o Brasil é passado.

Túnel que leva ao mercado egípcio. Foto: Carmen Rial
Túnel que leva ao mercado egípcio. Foto: Carmen Rial

Arredores do Büyük Çarşı (grande bazar). Foto: Carmen Rial
Arredores do Büyük Çarşı (grande bazar). Foto: Carmen Rial

Queer Olympix em Instambul e burnout militante


Deniz Nihan Aktan, uma estudante turca de doutorado em Antropologia terminando sua tese numa universidade em Florença, na Itália, esteve na minha conferência durante o congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, em Viana do Castelo, em Portugal, em julho passado. Disse que não entendeu nada do que falei, pois não compreende o português, mas que ficou interessada pelas imagens projetadas e, por isso, me escreveu um e-mail logo que ficou sabendo que eu iria a Istambul (“greetings and meeting request”). Ela veio assistir nossa apresentação no grupo de esportes organizado por Christian Bromberger no encontro. Conversamos à beira do mar, na cafeteria da Universidade Galatasaray, que leva o nome do bairro, as cores e o símbolo do clube de futebol, já que este foi fundado por estudantes do então liceu Galatasaray. Deniz me contou que, no norte da Turquia, há um grupo organizado de torcedoras de um clube local, que participam de várias atividades sociais, algumas envolvendo crianças, numa espécie de ativismo político – numa referência ao que havíamos apresentado. 


O que entusiasma Deniz mesmo é o Queer Olympix, que já teve nove edições e terá a sua décima no próximo ano, sendo Deniz uma das organizadoras. Ela exibe orgulhosa a jaqueta e uma bolsa com os seus logos. Mas acrescenta: “Estou numa fase de ‘burnout militante’”, se referindo ao imenso trabalho necessário para colocar de pé a décima edição de um encontro como esse. E entendo. Finalizar uma tese já é um trabalho enorme, imagina se a isso se somar organizar eventos. O tema da sua tese é o transfeminismo, e isso me possibilitou falar do trabalho do Wagner Camargo e do Vanrochris Vieira, possíveis interlocutores no INCT Futebol. Nas suas palavras, que traduzo aqui: “Minha pesquisa é uma etnografia multissituada com foco em comunidades transfeministas de futebol ativista e amador na Turquia e na Itália. Os professores da universidade interessam-se principalmente por movimentos sociais e, em consonância com esse contexto, argumento que esse campo emergente representa um engajamento político único e inovador com o esporte, diferente tanto do futebol feminino quanto do esporte LGBTQ+.” O título da tese (provisório) é “Team Beyond the pitch: prefiguration in transfeminist activist-amateur football communities in Turkey and Italy”.

Cafeteria da Universidade Galatasaray. Foto: Carmen Rial
Cafeteria da Universidade Galatasaray. Foto: Carmen Rial

Aiatolás futebolistas e o novo “muçulmanismo muscular”?


Participar de encontros de comissões da IUAES como o da Comissão de Antropologia do Meio Oriente nos coloca em contato com trabalhos acadêmicos de regiões pouco conhecidas por nós. Um dos papers mais curiosos que vi apresentado foi o da colega polonesa Magdalena Rodziewicz, intitulado “Do púlpito ao playground: clérigos xiitas iranianos em movimento”. Ele tratou da relação entre os clérigos iranianos e o seu ingresso no campo esportivo como atletas. Ela mostrou vídeos do YouTube de muitos jogando futebol e praticando outros esportes (judô, por exemplo) com o seu traje religioso e até usando o tapete da sua reza como base para push-ups, em uma completa dessacralização. Busquei os vídeos no YouTube para colocar os links, mas não tive sucesso.


No paper, ela dizia que a grande polêmica dessa inserção não estava na prática ela mesma (afinal, Mahommed foi um atleta-guerreiro), mas no uso da vestimenta de clérigo durante a prática do esporte. De fato, o uso do hábito de clérigo, a turba e a túnica, não era obrigatório, tradicionalmente. Um clérigo poderia pregar com roupas comuns. Mas tornou-se, em anos recentes, deixando seu uso controverso em espaços, digamos, menos sagrados. Uma alta autoridade eclesiástica chegou a considerar impróprio para momentos cotidianos, dando o exemplo de que um clérigo que parasse numa estrada para comer um sanduíche. Em uma circunstância assim banal, ele não deveria estar vestido com a túnica e turbante, pois o próprio traje acabou sendo visto como sagrado. Já outros discordavam e defendiam que o fato de se estar usando a roupa de clérigo em atividades esportivas popularizava a religião sem desonrar sua condição de sagrada. De fato, o seu uso teria o efeito positivo de atrair jovens homens para a religião. 


Ouvindo a apresentação de Rodziewicz, fiquei pensando em alguns filmes que mostram padres de batina jogando vôlei e futebol, e como isso nunca foi controverso entre nós. E no papel importante que tiveram os jesuítas, entre as ordens e congregações católicas, a mais dedicada à educação, na disseminação do futebol. E também como os missionários protestantes entraram tarde nessa dança, só depois do movimento conhecido como “cristianismo muscular”. Estaríamos agora diante de um “muçulmanismo muscular”? Também entre os muçulmanos estaria valendo o dito que “os meninos (vejam bem, os meninos!) rezam melhor correndo do que nos templos”? Como no lema do cristianismo muscular, que resultou, entre outros, na Y.M.C.A., a Young Men’s Christian Association (Associação Cristã de Jovens), fundada em 1844 em Londres e espalhada pelo mundo, como a materialização prática do cristianismo muscular?  Sim, isso antes de Y.M.C.A. se tornar um hino gay na voz do Village People (1978)... mas isso é outra viagem.


1 Cristhian Cajé e eu apresentamos o paper Football as Activism: Gender, Resistance, and Solidarity na IUAES Commission on Anthropology of the Middle East, Anthropology Transforming, Middle East in the Eye of the Storm, ocorrida de 10 a 12 de setembro de 2025, em Galatasaray University, Center for Social Research (TAM). 2 “From Pulpit to Playground: Iranian Shiʿi Clerics on the Move”.


Referências


GIULIANOTTI, Richard. Supporters, Followers, Fans, and Flaneurs: A Taxonomy of Spectator Identities in Football. Journal of Sport and Social Issues, Boston, v. 26, n. 1, p. 25-46, fev. 2002.


Sobre a autora


Carmen Rial é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em que atua no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. É coordenadora-geral do INCT Futebol e do Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC).


Relatos de viagem são maneiras interessantes de compartilhar novas descobertas. Se você se interessa por esse gênero, irá gostar também do nosso texto: Drops de viagem – Paris, junho de 2025 Como citar

RIAL, Carmen. Travelog 2: sobre camisetas, pernas ocultadas e clérigos xiitas. Bate-Pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.33, 2025.

 
 
 

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