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Por que falar sobre futebol na escola?

Jovane Gonçalves dos Santos (UFSC)



No texto abaixo, o autor apresenta alguns motivos que justificam a inclusão do futebol no currículo escolar para além da prática esportiva nas aulas de Educação Física.


O futebol pode ser usado como ferramenta para crianças e adolescentes refletirem sobre a sociedade (imagem ilustrativa feita com Gemini)
O futebol pode ser usado como ferramenta para crianças e adolescentes refletirem sobre a sociedade (imagem ilustrativa feita com Gemini)

O futebol precisa ser incorporado às discussões escolares para além da disciplina de Educação Física. Não só porque interessa e está nos sonhos de boa parte dos alunos e alunas (embora esse seja um bom motivo), não apenas porque suscita debates acerca de questões sociais urgentes (e isso é fundamental), mas principalmente, porque sua transversalisação no currículo pode ajudar a diminuir a existência de futebolistas bárbaros, disfarçados de “meninos”.


Embora criado na Inglaterra, o futebol entranhou-se na cultura brasileira que, orquestrando-o à sua maneira, fez dele uma paixão e um símbolo nacional. No Brasil, nos falam Da Conceição, Bassani e Grossi (2017), “tudo pode virar uma bola imaginária, que alimenta sonhos entre o jogo e o esporte” (p. 118). Sonhos, principalmente, de crianças e adolescentes que almejam tornar-se futebolistas. Muitas conhecem da profissão apenas a fama, o luxo, a “ostentação”. É o que as mídias evidenciam. Não sabem do outro lado, “escondido” nos textos acadêmicos. Não sabem dos alambrados que se enfrenta até a consolidação da carreira, como evidenciam Da Conceição e Vaz (2020). Não imaginam os desafios que a dupla carreira impõe, como asseveram os estudos analisados por Wanzeler, Carneiro e Costa (2023). Não são informados sobre os rumos dos jogadores que “quase, mas não chegaram lá” (Souza et al, 2008), sobre às dificuldades que o “rodar” implicam àqueles que chegaram (Rial, 2008) e ignoram que, no Brasil, como apontaram Da Conceição e Vaz (2020), 85% dos jogadores profissionais seguem suas trajetórias no esporte com contratos precários, ganhando até 2 salários mínimos. Se os adolescentes brasileiros soubessem disso, talvez seguissem com as mesmas aspirações – os sonhos não fazem cálculos para nos habitarem (ainda bem!) –, todavia, sonhariam com os pés na bola e no chão, melhor informados acerca do lugar que anseiam. 


Falar de futebol com estudantes da educação básica é, portanto, pautar o que muitos deles/delas gostam, admiram e esperam para suas vidas profissionais. É discutir com eles/elas os mitos e desafios que pairam sobre a profissão de jogar. Há algo mais freiriano do que lecionar a partir daquilo que os/as alunos/alunas sonham? 


Falar sobre futebol também possibilita discutir, na escola, questões sociais extremamente urgentes em nosso tempo: gênero, classe, raça... temas considerados espinhosos na vida docente e diante dos quais muitos professores talvez se perguntem: por onde começo? O futebol pode ser uma resposta a essa questão e um caminho especialmente interessante.


Se o tema a se tratar na escola é “gênero”, torna-se imperioso discutir “o gênero da bola” como faz Mariane Pisani (2018), compreendendo que a valorização do futebol masculino (que chega a pagar milhões a um jogador) em detrimento do feminino (que segue invisibilizado) não data de ontem. Tem raízes históricas, descortinadas por Carmen Rial e Caroline Soares de Almeida (2024). Em 1941, as mulheres foram proibidas por lei de jogarem futebol no Brasil. Alegava-se que esse esporte poderia prejudicar as funções maternas do corpo feminino. Por mais perspicaz que fossem as crônicas em defesa do direito da prática esportiva por mulheres, publicadas no jornal por Cléo de Galsan; por mais corajosa que fosse Carlota Alves Resende (presa por tentar levar jogadoras brasileiras para uma competição na Argentina), a lei se manteve em vigor até 1979. Por trás dela, nenhuma preocupação real com a maternidade feminina, mas, tão somente, com a manutenção da dominação masculina. Ainda hoje, em que pese toda a luta das mulheres, não faltam homens que esperneiam quando as “senhoritas” jogam ou arbitram uma partida. O caso de Ramón Diaz, analisado por Carmen Rial e Miriam Grossi (2024), é só mais um exemplo de como os homens agem quando “o espectro” do feminino ronda o futebol. Discutir esses episódios na escola pode ajudar, inclusive, a compreender por que, em geral, os meninos ocupam o centro das quadras esportivas enquanto as meninas ficam na beira delas (Auad, 2006).  


Se o tema a se tratar na escola for a comunidade LGBT+, então o futebol também pode ser uma excelente porta. Os estudos de Pinto e Almeida (2023), Vieira (2025) e Yamamoto (2024), ao analisarem as experiências vivenciadas no futebol por homens trans, gays e lésbicas, respectivamente, dão visibilidade à organização desses coletivos não só como times, mas como redes de socialização, resistência e encorajamento. Trabalhar essas etnografias com adolescentes pode ser muito inspirador, principalmente aos alunos e alunas afastadas do futebol apenas por não corresponderem ao gênero considerado ideal para o domínio da bola.


Se o conteúdo é classe social, é muito oportuno falar sobre a histórica utilização do futebol pelas fábricas, como possível estratégia para a domesticação dos corpos e possível criação do senso de grupo, de “família” perfeitamente alinhada à empresa (Rosenfeld, 1973). Oportuno, também, refletir sobre os recentes processos de “gourmetização” ou “pasteurização do torcer” nos estádios, escondidos sob a alegação de pacificação das torcidas (Saldanha et al., 2023). Uma nítida tentativa de afastar os pobres das plateias futebolísticas. 


Se a pauta da escola for o racismo, bem, aí o futebol não pode ficar de fora da discussão. É um dos espaços em que a democracia racial se renova, mas também se despedaça. A branquitude vibra e aplaude o jogador negro, mas, findada a festa, os demais negros, tão retintos quanto o jogador aplaudido, seguem em seus lugares de subserviência. O futebol está para o homem negro da mesma forma que o carnaval está para a mulher negra: entre a mulata e a doméstica é sempre a mesma mucama, como evidenciou Lélia Gonzalez (1984). O ídolo do branco é um jogador preto, seu empregado explorado também!


Ao mesmo tempo em que reafirma a convivência harmônica entre os “miscigenados”, o futebol também é uma arena onde os crimes de racismo são escancarados: bananas são jogadas no campo, jogadores xingados de macacos e por aí vai... Antonio Jorge Gonçalves Soares (2024) nos dá uma pista para compreendermos a persistência dessas violências: mais do que uma sociedade que se divide em classes, vivemos num tempo em que as pessoas se pensam em castas. O negro, mesmo que estude, jogue bola, ganhe dinheiro, use cordão de ouro... é portador de uma marca indelével. Segue sendo negro e, portanto, segue no andar de baixo. A escola, se busca formar alunos críticos capazes de analisar e refutar suas realidades, precisa falar sobre isso. 


Por fim, falar sobre futebol na escola é fundamental para a diminuição da barbárie. Theodor Adorno (1995), em seu texto Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar, associa à escola a função de “desbarbarizar” o sujeito e a sociedade. Por barbárie, Adorno compreende desde o culto extremo a determinadas figuras até a violência e desumanização do outro. Ora, os grandes clubes de futebol estão cheios de bárbaros. Jogadores que divulgam jogos de azar, fazem propaganda para a privatização do litoral brasileiro, defendem políticas genocidas, apoiam candidatos da extrema-direita, negam a importância das ciências e dos estudos, estupram e matam mulheres, defendem estupradores e feminicidas... ídolos do futebol, extremamente admirados por crianças e adolescentes. Neymar, carinhosamente chamado de “Menino”, é um exemplo dessa atrocidade (Rial, 2024). 


O grande problema é que essas figuras inspiram os alunos, tanto aqueles que pretendem tornar-se futebolistas (que desde cedo na escola já reproduzem a estética e os comportamentos observados nos jogadores famosos, como destacaram Klein e Bassani (2025) quanto os demais, que seguem vendo nessas pessoas modelos de masculinidades e de sucesso. Ídolos perversos, com baixa escolaridade, negacionistas, defensores de ideologias que, na arena política, atuam contra as classes mais pobres de onde, a maioria deles, são oriundos (Rial, 2008). 


Alba Zaluar (2004), nos anos de 1980, percebeu que, enquanto os jornais estampavam a figura dos traficantes procurados pela polícia, crescia, nas crianças e adolescentes das comunidades, a idolatria a esses sujeitos cercados pela fama e por um ethos de hipermasculinidade. Seus comportamentos tendiam a ser reproduzidos por elas na busca por alcançar a mesma posição social. Movimento análogo se dá agora em relação aos jogadores de futebol. Seus rostos, suas falas, suas farras, seus bens de consumo são divulgados em jornais, curtidos e compartilhados. Eles não carregam o rótulo de delinquentes, mas não deixam de ser violentos. Uma violência que se expressa no modo como se relacionam com mulheres, com a política, com a escola, com o outro, afinal. Suas posturas são balizas para alunos e alunas que buscam alcançar o mesmo status. 


O comportamento desses ídolos do futebol precisa ser analisado na escola, discutido, desconstruído, repudiado. Não só como forma para diminuir a admiração tola pela violência, mas também como medida para que os futuros jogadores de futebol (hoje alunos da educação básica) tenham mais consciência crítica e não reproduzam a barbárie. 


Renato Francisco Rodrigues (2025) adverte que o futebol não pode ser visto como separado da vida de uma sociedade. Ele faz parte dela e, em alguma medida, é seu espelho. Bem por isso é preciso incorporar esse tema ao currículo. Se a escola não falar sobre futebol e seguir calada frente a comportamentos execráveis assumidos por alguns futebolistas, meninas e meninos seguirão bárbaros e certos bárbaros seguirão “meninos”, como se fossem dignos desse carinho que nunca deveriam ter recebido. 


Referências


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AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero na escola. São Paulo: Contexto, 2006.


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GRAUPE, Mareli E. (Orgs.). Florianópolis: Mulheres, 2017. p. 117-137. 


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Sobre o autor


Jovane Gonçalves dos Santos é doutorando em Ciências Humanas pelo PPGICH/UFSC. Professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR). Mestre em Ciências Sociais. Membro do Grupo de Pesquisa Margens – Modos de Vida, Família e Relações de Gênero. Autor do livro Homens, bichos e diabos.


As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.


A escola como terreno de formação no qual o futebol deve ser inserido é o tema de outro texto do Bate-Pronto. Leia também: A crônica esportiva na formação de leitores-escritores Como citar


SANTOS, Jovane Gonçalves dos. Por que falar sobre futebol na escola? Bate-Pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.36, 2025. Por que falar sobre futebol na escola? © 2025 by Jovane Gonçalves dos Santos is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International



 
 
 

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Muito legal ver o texto do Jovane - resultado em parte do curso organizado pelo INCT com o Ari e o Rigo à frente. Espero que esse seja o primeiro de muitos!

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