top of page
Buscar

No coração esquecido do futebol

Demétrio Marguti Coelho (UFSC)


No texto abaixo, o autor relata uma experiência vivida durante o seu intercâmbio de um semestre em Montevideu, no dia em que ele foi assistir a um jogo da segunda divisão do campeonato uruguaio.


Um jogo da segunda divisão do campeonato uruguaio em um dia cinzento (imagem ilustrativa gerada com IA)
Um jogo da segunda divisão do campeonato uruguaio em um dia cinzento (imagem ilustrativa gerada com IA)

Já eram quase 11h30 da manhã. Mais um domingo ia se passando de maneira lenta, num dia cinzento na cidade de Montevidéu. O movimento na rua era quase nulo. Algumas famílias voltavam da feira, outras estavam a caminho dela, e eu esperava o ônibus num ponto ao lado da minha casa. O meu destino era inusitado, se alguém tivesse que adivinhar, certamente demoraria muito tempo até acertar e, ainda por cima, teria que ser insistente. Sendo sincero, ele era pouco usual, e provavelmente a cidade me ofereceria inúmeros outros planos. Mas pouco me importava, eu estava focado no meu objetivo e tinha para mim que, para aquele domingo, a programação escolhida iria ser a correta, por mais duvidosa que pudesse parecer.


O trajeto do ônibus foi rápido, como na maioria das vezes. O ponto em que parei não era tão longe do meu destino. Eu desembarcara no Parque Batlle. O bairro é famoso na capital. Em um de seus quarteirões, dorme uma das figuras mais importantes da história uruguaia, o Estádio Centenário. Mas, naquele dia, ele não iria receber nenhum jogo. O protagonista daquele domingo ficava ao lado e se chama Estádio Parque Palermo. O jogo que ali aconteceria era válido pela sexta rodada da segunda divisão do campeonato uruguaio. O mandante Montevideo Uruguay estava no meio da tabela, e o seu rival naquele dia era o Albion, primeiro colocado na liga, que jogava para se manter no topo. Ambos os clubes já viveram o seu centenário, mas o visitante Albion é conhecido por ser o clube de futebol mais antigo do Uruguai. Sua fundação é datada no ano de 1891. Apesar da longínqua história dos dois clubes, os títulos não são frequentes em suas prateleiras. O Montevideo Uruguay é dono de 8 títulos da terceira divisão do campeonato uruguaio e o Albion só foi conquistar o maior título de sua história em 2021, quando ganhou a segunda divisão do campeonato uruguaio e, depois de 113 anos, voltou a disputar os jogos na divisão de elite. Por mais estranheza inicial que a história desses dois clubes possa causar, ela apenas reflete a realidade do futebol uruguaio: a grande maioria dos clubes vive há anos em uma espécie de marasmo existencial.


Após esse pequeno preâmbulo para nos situarmos onde estamos, creio eu que o leitor possa ter sido afetado pelo contexto e imagino que esteja pensando que o jogo foi um show de horrores. Não o julgo, eu também fui ao estádio com uma expectativa baixíssima. O ambiente em torno do Parque Palermo não dava nenhuma pinta de que ali iria ser disputada uma partida. Apenas um carro de polícia estava parado na frente do estádio, com dois policiais fora dele, calmos, observando a situação. A entrada estava sendo controlada por duas pessoas que liam o QR Code dos ingressos e permitiam o acesso. Na parte de dentro, tudo era silencioso. 15 minutos antes de o jogo começar, deveria haver apenas umas 100 pessoas ocupando as arquibancadas, e esse número deve ter aumentado para 120 até o apito inicial. O único banheiro do estádio estava caindo aos pedaços, não tinha luz, a tampa da privada estava quebrada e a torneira não saía água. Nas tribunas, estavam acontecendo duas transmissões, uma de rádio e outra para o canal da Asociación Uruguay de Fútbol (AUF TV). Essa segunda era mais profissional. Tinham posicionado uma câmara numa estrutura metálica de uns 2 metros de altura completamente enferrujada e contavam com uma repórter de campo, que parecia ser amiga íntima dos dois “seguranças” que ficavam à beira do campo, somados ao narrador e ao comentarista. Por incrível que pareça, o jogo estava sendo cotado nas casas de apostas, e o homem que atualizava os lances em tempo real para as famosas bets estava sentado duas fileiras acima de mim. A torcida do time da casa estava em maior número, contava com umas 90 pessoas, chutando para cima, e, ao que me parecia, a grande maioria era de familiares dos jogadores. Já na visitante, deveria haver cerca de 35 pessoas, a grande maioria também familiares. Pouca gente vestia as cores do time da casa, lembro-me apenas de um senhor, figura central do espetáculo, que usava um gorro e um casaco do Montevideo Uruguay, provavelmente trabalhador do clube. Os famosos trapos, comuns nos estádios da América do Sul, eram discretos, apenas uns 4 ou 5 pendurados na grade.

O que parecia ser uma experiência morna se mostrou uma rica oportunidade de observação. Imagem: Demétrio Marguti Coelho
O que parecia ser uma experiência morna se mostrou uma rica oportunidade de observação. Imagem: Demétrio Marguti Coelho

O primeiro tempo estava prometendo tudo o que o jogo poderia entregar: absolutamente nada. Até os 34 minutos, quando tudo mudou. Um zagueiro do Albion fez um lançamento despretensioso ao campo de ataque. Para tentar cortar o passe, o goleiro do Montevideo Uruguay saiu loucamente da área, mas, em vez de chutar a bola, ele acertou em cheio o peito do atacante do time adversário que vinha em disparada. A infração resultou na expulsão do goleiro, em uma substituição por lesão para o time do Albion e em uma torcida visitante ensandecida, tentando invadir o campo para bater no goleiro expulso. Para evitar o linchamento, o goleiro correu para a arquibancada onde estavam os torcedores da casa e, por ali, ficou até o final do primeiro tempo. O intervalo do jogo foi um capítulo à parte. Já eram quase 13h30 da tarde, eu mal tinha comido antes de sair de casa e esperava que no estádio fosse encontrar algo para disfarçar a minha fome. Errado. O único ambulante que eu vi vendia apenas água e, com uns 30 minutos do primeiro tempo, ele sumiu. Intrigado com a situação, levantei-me de onde estava sentado e fui para a parte de trás do estádio. Por lá também não encontrei nada. Minha última cartada foi perguntar a uma mulher que estava na porta de entrada do estádio se ali dentro havia algo para comer. Ela me disse que não, mas que eu poderia sair, atravessar a esquina e ir ao mercadinho que ficava a uns 300 metros dali. Juro que, depois dessa resposta, a sensação que me veio instantaneamente foi de incredulidade. Eu sentia que estava em um jogo do campeonato municipal da minha cidade, que é minúscula, onde o prêmio para o campeão é uma caixa de cerveja.


Após toda essa pequena grande epopeia vivida para conseguir uma garrafa de água e um pacote de amendoim, voltei para o estádio, sem que ninguém conferisse novamente o meu ingresso, para contemplar o segundo tempo. A inferioridade numérica e técnica dos mandantes ficou nítida logo nos primeiros minutos. Com 13 minutos, o Albion abriu o placar e, a partir daí, apenas administrou o jogo. Aos 31, fez mais um e, no final, sacramentou a partida com um tranquilo 3x0. O time da casa parecia extremamente apático diante da situação, mas ninguém ao meu redor xingava, insultava ou cobrava os jogadores. Eu entendo a torcida: afinal, se um familiar meu estivesse jogando uma partida domingo de manhã, perdendo para um time nitidamente melhor e, ainda por cima, sendo pouco remunerado pelo ofício, eu também não teceria nenhum comentário crítico. O único que parecia estar com os ânimos um pouco mais à flor da pele era o senhor com o gorro do Montevideo Uruguay. Ele fez a caveira do juiz e de seus assistentes durante todo o jogo e deferia os mais diferentes e criativos xingamentos contra o camisa 7 do Albion quando ele pegava na bola. Suspeito que eles tiveram rusgas num passado nem tão distante. Sem as sacadas geniais desse senhor, confesso que teria sido difícil me manter focado em uma partida pouco privilegiada tecnicamente.


O apito final soou como um alívio para o time da casa, para a torcida do time da casa, para o time visitante, que não tinha nada mais a fazer no jogo além de ficar tocando para o lado, para a torcida do time visitante, que iria provavelmente para algum lugar comemorar a vitória comendo um bom asado, para o senhor de gorro, que já tinha perdido as forças para xingar, para a equipe de transmissão, que deveria ter mais o que fazer naquele domingo, menos para mim. Eu queria que o acréscimo que o juiz deu tivesse sido um pouco maior, para que eu pudesse desfrutar um pouquinho mais daquela experiência magnífica. Nenhum outro domingo de manhã vai ser igual a esse, por mais que eu possa ir a milhares de jogos da segunda divisão do campeonato uruguaio. As impressões que eu possa ter jamais se igualarão ao que foi naquele dia. Parecia que eu era um recém-nascido que olhava para um objeto pela primeira vez e ficava tentando entender o que era aquilo que aparecera na minha mirada.


Muitos daqueles jogadores jamais jogaram na elite de seu país, muitos deles conciliam o esporte com outro trabalho. E é justamente nesse contraste que reside a beleza do futebol. A grandeza não está apenas nos palcos mais iluminados, mas também nesses cenários modestos, onde o esforço é movido mais pela paixão do que pela recompensa. Assistir a uma partida como aquela me fez perceber que, longe dos holofotes, o futebol continua a cumprir o seu papel mais essencial, reunindo pessoas, contando histórias e dando sentido a um simples domingo cinzento em Montevidéu.


Sobre o autor


Demétrio Marguti Coelho é estudante de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina.


As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.


Relatos etnográficos são uma forma de imersão em pesquisas sobre futebol. Se você gosta desse formato, irá se interessar também pelo nosso texto: https://www.inctfutebol.com.br/post/lapsos-de-raz%C3%A3o-em-meio-%C3%A0-paix%C3%A3o-ou-o-contr%C3%A1rio


Como citar


COELHO, Demétrio Marguti. No coração esquecido do futebol. Bate-Pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.35, 2025. No coração esquecido do futebol © 2025 by Demétrio Marguti Coelho is licensed under Creative Commons Attribution-NoDerivatives 4.0 International

 
 
 

2 comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
Convidado:
18 de nov.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Mesmo em áreas não relacionadas diretamente a cassinos, como o futebol local, podemos perceber como a emoção e o planejamento estratégico são importantes. A atenção aos detalhes, a paciência e a capacidade de tomar decisões rápidas são habilidades que se aplicam tanto no esporte quanto nos jogos online. Plataformas como jogo do tigrinho possibilitam usar essas habilidades de forma divertida e lucrativa, conectando estratégia e entretenimento.

Curtir

Convidado:
10 de out.

muito massa saber um pouco mais sobre o futebol uruguaio

Curtir
bottom of page