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A crônica esportiva na formação de leitores-escritores

Rodrigo Bittencourt (SEEDUC/RJ)

 

No texto a seguir, o autor, que é professor de ensino básico, conta como utilizou as crônicas esportivas para gerar nos alunos o interesse pela prática da leitura.

Como o futebol pode ajudar a incentivar a leitura? (imagem ilustrativa feita com Dall-E/Pixelcut)
Como o futebol pode ajudar a incentivar a leitura? (imagem ilustrativa feita com Dall-E/Pixelcut)

Segundo uma pesquisa[1] do Instituto Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), realizada entre 30 de abril e 31 de julho de 2024, a nossa sociedade teve uma perda de aproximadamente sete milhões de leitores no último quadriênio. A pesquisa ouviu 5.504 entrevistados por meio de visitas domiciliares realizadas em 208 municípios brasileiros.

 

Um fato a ser destacado nesse levantamento são as obras lidas pelos entrevistados. Em primeiro lugar, está a Bíblia. O primeiro cânone – obra tida como de relevante valor estético para críticos literários – é Dom Casmurro, de Machado de Assis, que aparece somente na décima terceira posição. Além disso, a pesquisa aponta que a escola tem perdido espaço como fomentadora de leitura. Segundo os pesquisadores, há uma queda no índice de entrevistados que apontam a escola como local de engajamento leitor.

 

Esses dados mostram que a tradição escolar de utilizar o cânone como principal ou única ferramenta de indução à leitura tem dado errado. Na esteira desse problema, ainda há o esvaziamento do ensino literário Brasil afora que, em muitas redes, costuma ser reduzido a componentes desconectados dentro da disciplina de língua portuguesa ao longo da educação básica.

 

O direito à leitura (em especial, a literária) ainda é violado pelas poucas opções de bibliotecas públicas não-escolares em espaços periféricos, como a populosa região da Baixada Fluminense, local onde leciono como professor de língua portuguesa e de literatura na educação básica (ensinos fundamental e médio) há alguns anos.

 

Inquieto com essa situação, desenvolvi uma série de oficinas de leitura e escrita, que foram objeto da minha dissertação de mestrado sob o título “Cronistas meritienses: a crônica esportiva na formação de leitores-escritores”. Construí essa pesquisa-ação com alunos de uma turma de oitavo ano do ensino fundamental em um colégio estadual, situado em São João de Meriti/RJ, no primeiro semestre letivo de 2024. Ela foi defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no mesmo ano.

 

Percebi que, para muitos desses alunos, o cânone é tido como algo “chato” e difícil demais de ser compreendido. Sendo assim, conversei com eles e percebi que algo popular seria atrativo. A partir daí, o caminho se daria através do futebol, mais precisamente, explorando crônicas esportivas literárias, de autorias diversas (incluindo autoras), de Luís Fernando Veríssimo a cronistas desconhecidos do grande público.

 

A crônica é um gênero textual “genuinamente carioca”, pois permite a leveza da coloquialidade, a observação do cotidiano urbano, a monumentalização do “simples”, o trânsito entre outros gêneros. Também permite o diálogo entre a ficção, que é um traço constitutivo da literatura, e o registro fiel dos fatos, que é uma característica dos textos jornalísticos. Dito isso, a crônica é um gênero com potencialidade para servir de porta de entrada para a leitura e a escrita de outros gêneros.

 

Além disso, o ensino da crônica está previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nos currículos mínimos de várias redes de ensino, dentre elas, a fluminense. Ele aparece em diversos livros didáticos e paradidáticos que identifiquei ao longo da minha pesquisa.

 

A partir do momento em que a crônica tem o futebol como tema, ela é classificada como crônica esportiva, um gênero que nasce no jornalismo, mas que chega à literatura nacional através de Nelson Rodrigues e ganha a adesão de outros ícones dessa arte, como Carlos Drummond de Andrade, Marcelo Moutinho, Clarice Lispector e outros. É notório que o futebol é um esporte que desperta paixões, mobiliza pessoas e compõe a nossa formação identitária. O futebol é citado em diversas produções literárias do Brasil, que é tido como o “país do futebol”.

 

Ao longo da minha adolescência e da minha infância, por exemplo, eu me lembro de ler o noticiário esportivo para tomar ciência de diversos campeonatos de futebol, inclusive de alcance internacional. Eu costumava comprar jornais específicos sobre futebol ou lia com mais atenção os cadernos esportivos de grandes veículos de imprensa. Assim como outros milhões de brasileiros, o futebol faz parte da minha experiência leitora.

 

Resumidamente, a minha sequência didática é composta por oficinas que estão distribuídas em atividades de leituras, de escrita e de retextualização de crônicas esportivas. As crônicas selecionadas têm características, autores e contextos históricos diversos, fato que tende a ampliar o repertório dos alunos participantes e ratificar a diversidade desse gênero.

 

Para desmistificar o senso comum de que o futebol seria um espaço exclusivamente masculino e engajar a participação das alunas, outro recurso explorado é o da potencialidade feminina em algumas crônicas selecionadas, seja pela autoria e/ou pela presença de personagens femininas com destaque.

 

Aliás, houve boa participação feminina, que representou 41,3% das autorias (considerando duplas e produções individuais), durante a oficina de escrita, dado que confirma a possibilidade de uso do futebol como uma ferramenta ampla de ensino da crônica na ambiência escolar. Além disso, na minha análise, as duas melhores crônicas foram elaboradas por alunas.

 

Na revisão por pares, etapa seguinte à produção da versão final das crônicas esportivas discentes, para fomentar uma consciência metacognitiva, a correção respeitou a formação autoral. Dessa forma, as duplas corrigiram crônicas de outras duplas tendo como referência norteadora as seguintes perguntas: O texto é majoritariamente narrativo? O texto aborda um tema esportivo? É possível identificar elementos ficcionais e/ou características de uma crônica jornalística? É possível concluir que há semelhança com alguma crônica lida em sala de aula? O texto contém observações do cotidiano urbano?

 

Segundo a revisão discente, todas as crônicas estão adequadas, ou seja, cumpriram as características desse gênero. Alguns alunos chegaram a elogiar as produções revisadas, situação que mostra a qualidade das publicações e a forma respeitosa como o trabalho foi conduzido por eles. Ao final dessas oficinas, os alunos-cronistas ficaram felizes com os resultados obtidos e confessaram que jamais tinham participado de experiência similar até então.

 

Também promovi a circulação das crônicas esportivas dos alunos além da ambiência escolar de caráter avaliativo. Publiquei as obras em um blog[2] nomeado com o mesmo título da minha dissertação. Dentro dos marcos legais em vigor, ocultei a identidade dos alunos-cronistas, que são menores de idade. Cabe destacar que, desde a primeira oficina, os alunos participantes sabiam dessa proposta de circulação extraescolar, inclusive com repercussão no referido blog, e aprovaram a ideia.

 

Os resultados que obtive nas oficinas que compuseram este trabalho mostraram que o gênero textual crônica esportiva é uma alternativa bastante eficaz de leitura e de escrita na escola, visto o engajamento com o futebol dos alunos participantes.

 

Considero a escola como um local de ampliação de repertório e que o ensino literário contribui nesse sentido de maneira a potencializar a formação dos alunos em leitores críticos e capazes de se posicionarem nos diversos espaços sociais por meio de leituras e de produções textuais.

 

Sendo assim, as oficinas construídas nesta pesquisa-ação permitiram que os alunos-cronistas utilizassem o futebol, que faz parte do dia a dia deles, a partir de uma percepção literária, com criação de subjetividade correlacionada aos espaços de tensão social.

 

Além disso, a retextualização exigiu de todos uma postura criativa nesse processo, pois foi necessário um exercício de extensão de conhecimento, que resulta na fusão da manutenção de algumas características constitutivas do texto-fonte (a crônica esportiva escolhida) com as marcas autorais de cada jovem cronista, que tem as suas vivências e as deposita na construção do seu novo texto.

 

Por fim, espero que este trabalho seja útil às professoras e aos professores de língua portuguesa e de literatura, provocando uma reflexão sobre o uso do futebol como um instrumento de ensino da literatura, em especial, a partir da retextualização de crônicas esportivas.

 

Sobre o autor

 

Rodrigo Bittencourt é presidente do Movimento Trabalhista pela Educação (MTPE) no Município do Rio de Janeiro. Professor da rede estadual do Rio de Janeiro (SEEDUC/RJ) e da rede municipal de Japeri/RJ (Semed/Japeri). É licenciado em Letras (UVA/PROUNI), especialista em Educação Étnico-Racial na Educação Básica (PROPGPEC/CPII) e mestre em Língua Portuguesa (PROFLETRAS/UFRJ).

 

As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.

 

A relação entre o futebol e os produtos midiáticos é um tema com muitas possibilidades de investigação, perpassando as crônicas esportivas, mas também a TV. Leia também o nosso texto: “Tem gay jogando futebol na novela?


[2] Disponível em: https://sites.google.com/prof.educa.rj.gov.br/cronistas-meritienses/?pli=1&authuser=1. Acesso em: 16 de nov. 2024. Como citar: BITTENCOURT, Rodrigo. A crônica esportiva na formação de leitores-escritores. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.26, 2025. A crônica esportiva na formação de leitores-escritores. © 2025 por BITTENCOURT, Rodrigo. é licenciado sob CC BY-NC 4.0

 
 
 

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