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Tem gay jogando futebol na novela?

Foto do escritor: INCT FutebolINCT Futebol

Vanrochris Helbert Vieira


No texto a seguir, o autor apresenta uma proposta de pesquisa sobre futebol, telenovela e homoafetividade em telenovelas brasileiras e argentinas.



Você já viu um jogador de futebol gay na novela? (imagem ilustrativa criada com DALL-E)
Você já viu um jogador de futebol gay na novela? (imagem ilustrativa criada com DALL-E)

Um insight recente está me levando a desenhar uma pesquisa sobre futebol, telenovela e homoafetividade. Essa proposta surgiu a partir de uma reflexão sobre os estudos do futebol em outra mídia: o cinema. Com membro do INCT Futebol, tenho trabalhado no desenvolvimento de um banco de citações a partir dos webinários que temos promovido. Um deles foi o Cinema e Futebol Brasileiro. Nele, o professor Hamilcar Dantas Junior (UFS) demonstrou que o cinema no Brasil tem abordado o futebol ao longo das décadas de diversas formas. Eu ainda não havia assistido este webinário em específico, nem ao vivo nem depois – já que todos os webinários ficam disponíveis para serem vistos posteriormente no canal do INCT Futebol. Já aproveitando o banco de citações que está sendo realizado, no webinário em questão, o professor Hamilcar apontou:


Das peladas aos jogos mais importantes, tem sempre uma história. Todos que já jogaram sabem que quando termina a nossa pelada, a gente vai resenhar, e aquele drible que a gente deu – que nem foi lá grande coisa – se torna uma grande narrativa para tirar um sarro com o colega. De certo modo, entendo que cinema e futebol se prestam à representação de algo, e isso se constitui como narrativa. Nesse sentido, eu acho que os dois se conciliam irremediavelmente.

Extrair as citações desse webinário me fez pensar sobre as possíveis relações entre o futebol e outro tipo de produção audiovisual muito importante no país: as telenovelas. Essas narrativas televisivas são um tema com o qual eu guardo uma forte relação afetiva. Me lembro de assisti-las desde muito novo, na sala de casa, ao lado da minha mãe. A propósito, ela é ainda mais noveleira do que eu: todos os dias, a Dona Vanei vê as cinco novelas exibidas na programação da Rede Globo. Assistir à novela das nove com ela ainda é um ritual diário muito importante. Mesmo quando não gostamos da trama – como é o caso de Mania de Você, novela das nove atual –, ainda assim nos divertimos criticando os atores, a direção, o roteiro, etc.


Assim como o futebol, as novelas são conhecidas como um elemento importante da identidade cultural brasileira. Mais do que isso, esses são dois elementos importantes na identidade latina, ligando-nos fortemente a nossos países vizinhos. No entanto, apesar de eu, pessoalmente, ser um noveleiro confesso, não me veio à memória muitas novelas que tivessem tratado do futebol. Inicialmente, consegui pensar em apenas duas grandes referências para imaginar uma discussão sobre telenovela, futebol e homoafetividade. Na verdade, o meu interesse pelo futebol é recente, tendo começado no meu doutorado. Até então, eu não tinha afinidade com esse tema e, inclusive, sabia bem pouco sobre ele. O que me levou ao encontro com esse esporte foi a vontade de compreender o fenômeno de criação de times de futebol LGBTQIAPN+ em Belo Horizonte. Isso porque minhas pesquisas sempre estiveram voltadas para as formas de resistência de pessoas LGBTQIAPN+ em espaços tradicionalmente hostis, como a mídia televisiva e a religião cristã. 


Minha pesquisa de doutorado, que, mais tarde, também se estendeu para um estágio pós-doutoral, foi realizada a partir do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. No entanto, minha graduação e meu mestrado são em Comunicação Social pela UFMG. Na minha graduação, inclusive, realizei uma iniciação científica na qual estudei os modelos de masculinidade presentes na telenovela Ti-Ti-Ti (Globo, 2010). Agora, tendo terminado meu estágio pós-doutoral e permanecendo no INCT Futebol, eu vinha pensando em como poderia direcionar minhas inquietações sobre o futebol para a minha formação enquanto comunicólogo, sem perder de vista as questões LGBTQIAPN+ que me são caras. A organização das citações extraídas do webinário Cinema e Futebol Brasileiro me fez pensar novamente nas telenovelas.


O ponto de partida para a investigação


As duas novelas das quais me lembrei por trazerem discussões sobre futebol e homoafetividade são a brasileira Avenida Brasil (Globo, 2012) e a argentina Botineras (Telefe, 2009). Em Avenida Brasil, um jogador de futebol se sente atraído por um colega de equipe. No entanto, o tema é tratado nas entrelinhas, e os dois acabam formando um “trisal” com uma personagem feminina. Em Botineras, o relacionamento entre dois jogadores de futebol é explorado mais explicitamente, havendo até mesmo uma cena de sexo entre o casal – antes mesmo de a primeira cena de beijo entre dois personagens masculinos ter ido ao ar no Brasil (Amor à Vida, Globo, 2013).


Uma breve revisão de bibliografia sobre essa temática apontou para alguns trabalhos que já buscaram fazer um levantamento sobre representações do futebol em telenovelas, a maior parte deles no Brasil. Destaque para o de Mauro Alencar (2011) e o de João Biazotto e José Marques (2013). No entanto, as demais novelas identificadas a partir dessa revisão, aparentemente, tratam do futebol sem tocar no tema da homoafetividade. É surpreendente o número pequeno de abordagens sobre esse esporte em novelas encontradas por esses trabalhos, especialmente se compararmos com o rico cenário existente no cinema brasileiro, demonstrado pelo professor Hamilcar Dantas Junior. Entre as poucas novelas citadas nos trabalhos, destacam-se Irmãos Coragem (Globo, 1970), que tinha um jogador do Flamengo como um de seus personagens, e Vereda Tropical (Globo, 1984), que representava a ascensão de um jogador de um time de segunda divisão para o Corinthians.


Também desenvolvi um levantamento inicial para verificar a existência de outras novelas latinas que abordassem a temática do futebol e da homoafetividade. Não consegui realizar mais nenhuma identificação nesse primeiro momento, o que chama a atenção especialmente pelo fato de que ambas as novelas já conhecidas foram ao ar há mais de uma década. No entanto, coincidentemente (ou não), quando a escrita deste texto estava sendo finalizada, uma breve sequência envolvendo a presença de um jogador homo-orientado em uma pelada de futebol foi ao ar em Garota do Momento, atual novela das seis da Rede Globo. Essa abordagem, no entanto, foi bastante pontual, já que o futebol não é um tema recorrente na novela, nem faz parte da construção do personagem para além do episódio em questão. A seguir, apresentarei a minha proposta para identificação das relações entre futebol, telenovela e homoafetividade em um cenário ampliado de telenovelas brasileiras e argentinas. No entanto, essa cena também já está catalogada para a realização de uma análise complementar.


As potencialidades de buscar por essas representações em telenovelas


As telenovelas têm características narrativas e de recepção próprias, que fazem com que a linguagem delas e a do cinema tenham diversas diferenças. O nome “novela” liga essa trama à ideia de “novelo”. Isso porque a trama das novelas é um emaranhado de relações entre personagens e núcleos com um fio condutor que vai amarrando-os entre si. As novelas são herdeiras dos folhetins e dos melodramas. Dos folhetins, vem a organização da trama em capítulos. Essa é uma divisão diferente da proporcionada por episódios. Enquanto os episódios têm uma narrativa relativamente independente e construída em torno de si, os capítulos começam com um gancho – pausa em uma cena num momento de expectativa – e terminam com outro, realizando um recorte sem autonomia em relação ao restante da trama. Esse recorte é marcado por um elemento de suspense, reviravolta ou surpresa.


Dos melodramas, vem a divisão maniqueísta entre personagens “bonzinhos” (mocinhos) e “malvados” (vilões), além dos arquétipos e estereótipos reiteradamente explorados – como a gêmea boa e a gêmea má, a personagem dada como morta que ressurge surpreendendo a todos, o “golpe da barriga” dado pela vilã, a redenção do mocinho mulherengo ao se apaixonar pela mocinha, a mocinha pobre que fica rica e se vinga de todos os vilões, etc. Outra característica da novela é ser uma obra aberta muito influenciada pelos índices de audiência e pela recepção do público, o que, muitas vezes, faz com que a trama inicialmente planejada seja alterada ao longo da produção. Virtualmente, todas essas características podem dar pistas interessantes sobre as representações da homoafetividade no futebol: os jogadores gays são mocinhos ou vilões? A resposta do público durante a trama alterou a história deles? Quais expectativas estavam presentes nos ganchos das suas cenas?


Traçando uma proposta de recorte


Por enquanto, tenho apenas as inquietações que deram origem a essa proposta de pesquisa. Apesar de ainda não ter respostas sobre o tema, no entanto, gostaria de apresentar um projeto inicial de estruturação de como pretendo buscá-las. Suas linhas gerais estão demarcadas por um processo de reconhecimento desse terreno. Vários países latinos são grandes produtores de telenovelas, com destaque para o Brasil, o México e a Colômbia. No entanto, como Botineras é uma novela argentina, pensei em começar a desenhar uma proposta de investigação sobre telenovela, homoafetividade e futebol na América Latina a partir do Brasil e da Argentina. A Telefe – conhecida como Canal 11 antes de ser privatizada – é uma das principais produtoras de novelas na Argentina. Foi ela que veiculou Botineras. Porém, essa emissora tem uma produção de telenovelas muito menor que a da Rede Globo, maior produtora de telenovelas no Brasil.


Até o momento, foi possível identificar que a Telefe/Canal 11 já produziu pelo menos 79 novelas1. Diferentemente da Globo, essa emissora não as produz de forma contínua. Além disso, ela não disponibiliza em seu site uma lista com as novelas já produzidas. Assim, está sendo necessário fazer o levantamento delas em sites externos. Contudo, como elas são produzidas de forma descontínua, não é possível identificar facilmente a ausência de tramas ainda não identificadas. Na década atual, o índice de produção tem sido bastante baixo, com a identificação de apenas uma nova novela original, em 2022. Por outro lado, a Globo segue produzindo, ininterruptamente, pelo menos três novelas ao mesmo tempo. Elas são divididas entre diferentes faixas-horárias: a das seis, a das sete e a das nove – até a década de 2000, a última faixa era exibida mais cedo, às oito. Entre esses três horários, quanto mais tarde, maior a visibilidade. Avenida Brasil, por exemplo, é uma novela das nove.


Até hoje, a Globo já produziu 333 novelas originais para a TV aberta! Só no horário nobre (como é chamada a antiga faixa das oito e atual faixa das nove), já foram 97 tramas. A Globo produz novelas de forma sistemática desde a década de 1960. Já a Telefe/Canal 11, na Argentina, começou a produzir novelas de forma estruturada apenas na década de 1980. Considerando apenas as novelas das oito e das nove lançadas na década de 1980 em diante, a Globo já produziu 72 novelas. Acredito que essa seria uma possibilidade de recorte inicial de novelas brasileiras baseado em relevância e temporalidade. A ideia é, numa fase preliminar de pesquisa, identificar a possível presença de representações sobre futebol e homoafetividade no enredo dessas 72 novelas brasileiras e das 76 tramas da Telefe/Canal 11 produzidas no mesmo período já identificadas. Diferentemente da Globo, as novelas da Telefe/Canal 11 não são organizadas sistematicamente por faixas-horárias. Como exemplo, as 28 novelas já identificadas lançadas na década de 2000 foram exibidas em 8 diferentes faixas-horárias, vespertinas ou noturnas. Por isso, o recorte temporal seria o único inicialmente aplicado.


A partir disso, será possível investigar se há, em cada novela – além de Avenida Brasil e Botineras – alguma relação entre futebol e homoafetividade. A proposta é realizar essa avaliação por meio da leitura de textos de apresentação das novelas em três locais: nos sites das emissoras, em páginas da Wikipedia sobre cada uma – pois quase todas elas possuem – e em uma busca adicional online para verificar a existência de fontes complementares. Esta será uma pesquisa de caráter apenas explanatório para identificar as tramas, dentro desse recorte, que poderão ser posteriormente analisadas. A Globo tem um site específico para tratar de produtos passados, o Memória Globo, com informações sobre cada novela. A Telefe/Canal 11, por outro lado, não possui muita informação online sobre seus produtos. No entanto, ela disponibiliza alguns links externos nos quais é possível ler mais sobre alguns deles.


A estratégia proposta permite a identificação da presença de representações de futebol e homoafetividade em telenovelas em um cenário amplo no Brasil e na Argentina. No entanto, ela também carrega algumas limitações, como a dificuldade de encontrar referências pontuais ao futebol nas tramas em que esse não é um tema central, como acaba de ocorrer em Garota do Momento. Além disso, deixa de fora, nessa busca inicial, novelas globais de outras faixas-horárias (como também é o caso de Garota do Momento) e novelas brasileiras e argentinas de outras emissoras. No entanto, o recorte realizado privilegia a relevância das emissoras e faixas-horárias, já englobando uma grande quantidade de tramas (148). Além disso, se a pesquisa se mostrar promissora, a busca poderá ser ampliada futuramente.


Se você é noveleiro ou noveleira, assim como eu, e identifica alguma outra novela brasileira ou de outros países latinos que já tenha tocado nesse tema direta ou indiretamente, comente no post! Isso pode nos ajudar bastante a identificar essas tramas!


1 Interessante apontar que a Argentina possui um gênero chamado “telecomédia” que, por vezes, se sobrepõe à telenovela por ter características muito semelhantes. Por hora, estamos considerando telenovelas apenas as telecomédias que também são identificadas dessa maneira.



Referências:

ALENCAR, Mauro. Memória coletiva e memória histórica (e suas relações com o futebol e a telenovela). Revista Latinoamericana de Ciencias de la Comunicación, Caracas, n. 2, p. 106-115, 2011.


BIAZOTTO, João Evandro; MARQUES, José Carlos. O futebol na telenovela: uma análise sócio-política. Anais do 18º Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Bauru, SP: Universidade Estadual Paulista, 2013. p. 1-11.


Sobre o autor:

Vanrochris Helbert Vieira é doutor em Ciências Humanas, área de concentração Estudos de Gênero, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Também é mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é bolsista de extensão do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Estudos do Futebol Brasileiro (INCT Futebol) e um dos editores do blog Bate-Pronto.


A presença de pessoas LGBTQIAPN+ no futebol ainda é um tema que envolve muitos tabus. Se você se interessa por questões de gênero e sexualidade no futebol, poderá gostar também do nosso artigo: Breve história da criação dos times de futebol LGBTQIAPN+ mineiros.


Como citar:

VIEIRA, Vanrochris. Tem gay jogando futebol na novela? Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.6, 2025.




 
 
 

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