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Ritualizando a (des)crença: reflexões sobre o Mundial de Clubes

Rafael Willian Clemente (UFRRJ)


No texto a seguir, o autor reflete sobre as potencialidades trazidas pelo Mundial de Clubes da FIFA:


A FIFA organiza, em 2015, a maior edição da Copa do Mundo de Clubes. Imagem: Digital-News[1]
A FIFA organiza, em 2015, a maior edição da Copa do Mundo de Clubes. Imagem: Digital-News[1]

Eu, no alto de minha ressabiada arrogância contra a “Dona FIFA”, imaginei a Copa Mundial de Clubes como um torneio de verão em terras yankees. “Fim de feira” para europeus, pré-temporada para jogadores reservas e recém-contratados, oportunidade para americanos disputarem torneios contra o velho continente, vitrine para craques latinos e seus empresários na negociata com o “mundo árabe” ou europeu. Fui contrariado! 


Estou positivamente surpreso e preso à televisão sob o mantra hipnótico do qual a próxima partida? A bem da verdade, quem ama futebol é inebriadamente encantando no rolar da bola. O canto da sereia soa aos ouvidos, salta aos olhos dos que vivem e convivem nas sociedades onde o jogo, o esporte – e, em nosso caso, o futebol – une, reúne, aparta, faz sociabilidades e conflitos. É necessário tal encantamento. Sem essa categoria, nossa vida seria mesquinha, dura e rígida. Quiçá sofreríamos de apatismo crônico ou violência exacerbada sob as mínimas pressões. Mas, não será isso o que estamos vivendo enquanto uma sociedade que vem sendo educada no esquecimento da ritualização de seus convívios materialmente físicos e somente encena uma vida nas redes midiatizadas? 


A vida ritualizada deveria ser mais suave, ou não?! E a cultura de arquibancada pode orientar caminhos. Fato é: encantamento não é sinônimo de uma postura acrítica. Encantar-se é também sensibilizar-se diante de um time de semiprofissionais neozelandeses e seu imenso déficit no quesito saldo de gols, diante de três agremiações históricas do futebol mundial. Podemos ler de forma caricata tal participação ou transformá-la em uma análise mais crítica em torno das globalizações, mundializações e diferenciações proferidas pela ideia de progresso. Mas, também, acessar o evento pela ótica caleidoscópica da cultura local. Aliás, o futebol, em seu caminho de massificação não concluído, é recente por aquelas bandas do Pacífico. Acontece que, ainda assim, lá estavam os jogadores – e torcedores nas arquibancadas, por lá chamados de supporters


Das várias nomenclaturas criadas para denominar o indivíduo ou a indivídua que exerce uma paixão por uma agremiação, o italiano tifosi e o brasileiro torcedor(a) são os que mais remontam às dores dessa relação de aproximação com um objeto devocional. O tifo é uma doença severa. Torcer, um gesto reflexivo da paúra mental. Ato que requer força física.

 

No seio desses grupos, há diferentes intensidades, e mesmo legitimações, sobre “o que é torcer de verdade”. Ou seja, é um espaço de disputa entre grupos que se unem para um mesmo fim, sob um mesmo “guarda-chuva”, mas de maneiras diversas. Portanto, há convívios. Esses convívios, às vezes conflitivos, como se mostrou nas arquibancadas estadunidenses entre representantes parisienses e botafoguenses, são parte do espetáculo que é o evento jogo, o evento futebol. A ritualização dos convívios – em suas sociabilidades e conflitos – é encenada por esses agentes autoclassificados como organizados, barras, ultras, supporters, fans. A depender do seu local de origem e da construção de suas identidades. 


As arquibancadas do Mundial de Clubes, nesse novo formato, exibem as interseções das mundializações e globalizações culturais e econômicas. As influências recíprocas entre grupos estão à mostra para o mundo ver. Ultras orientais e europeus em interação simbólica sob faixas penduradas, bandeirões e bandeirinhas, ritualizações da festa. Barras argentinos e organizados brasileiros – as mãozinhas jogadas bambas ao alto por palmeirenses e tricolores cariocas – gesto típico de argentinos e uruguaios – que o digam.  As arquibancadas disputam – simbolicamente e indiretamente sempre disputaram – com o jogo em si, onde está o verdadeiro espetáculo. Quem domina o quê. Óbvio dizer da dialética entre ambos. É uma via de mão dupla que se retroalimenta.


Longe de onde “a bola corre mais que os homens”, os que ficaram por torcer em solo tupiniquim aparentam uma camaradagem para com seus pares nacionais e regionais que estão na disputa. Rivais em campo, estão timidamente mais próximos, numa espécie de sentimento anti-hegemônico para com os clubes europeus. Porque escrevo isso? Dos jogos de rivais locais, assisti todos próximos a um misto de torcedores. Longe dos estádios, mas também das Fan Fest, o ambiente heterogêneo determinava um ar de simpatia entre alvinegros, rubro-negros e tricolores. Claro, por se tratar de uma ritualização, é evidente que algumas provocações estão sempre à mostra. “Torci para todos, menos pro Flamengo. Esse, não”, dizia um cruzmaltino em alto e bom som, galhofante, diante do televisor e de um grupo rubro-negro. “Hoje é porco, hein! É Brasil! Hoje é Brasil!”, anunciava o tricolor e sua simpatia momentânea pelo alviverde paulistano. 


A ritualização da festa está também na crença, quase sobrenatural, dos momentos que o futebol oferece aos seus. O impossível, a lógica, o cartesianismo podem ser superados nesse espaço. Todo torcedor já passou por isso. Em alegria ou tristeza, um gol no último minuto. Uma arrancada, um passe errado, um time que se comprometeu com simples garra perante a qualidade técnica do adversário e fez o domínio do esquema tático alheio. O orgulho externado da capacidade de jogar e garantir resultados em níveis tão diferentes de um mesmo jogo. A lógica do mercado, mas também a lógica de utilizações tecnológicas mais funcionais para potencializar o talento. O garoto que saiu franzino dos campos de terra, dos times empresariais, dos campeonatos de menor valor, aparece parrudo, sobrando em físico após ser testado e lido em laboratórios físico-nutricionais. 


Embora tudo isso, lá estão os párias. Dentro e fora das quatro linhas. Muitos e muitas em busca de experiências shoppinficadas e mercantis. Outros pela loucura de acompanhar seu objeto devocional. Com menor “torcida legitima” nas arquibancadas, europeus se garantem pela superioridade econômica de seu futebol. Podem comprar e alugar os pés de obra de qualquer lugar do mundo. Surgindo craques no Senegal ou um artilheiro finlandês, o poder do dinheiro tende a imperar. Mas é futebol. E a bola sempre pode surpreender os mais céticos, os mais ricos e também os que dão de ombros, achando que será apenas um torneio de verão.  [1] CC BY-NC-SA 4.0.


Recomendações de leitura:

O texto de Rafael Willian Clemente toma como base as referências a seguir, que são fontes recomendadas para o desenvolvimento de uma maior compreensão sobre o tema:


DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.


ELIAS, Norbert. A busca da excitação. Lisboa: Diffel, 1992.


FLORENZANO, José Paulo. Um cálcio diverso: partidas políticas e torcidas ultras. In: BUARQUE DE HOLLANDA, Bernardo B. (Org.). Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014.


FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito: curso dado no Collège de France (1981-1982). 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: GEERTZ, Clifford. A interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.


HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume, 2001.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7letras, 2010.


HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012.


KENNEDY, Peter; KENNEDY, David (Orgs.). Football in neo-liberal times: a marxist perspective on the European football industry. Londres: Routledge, 2016.


MAUSS, Marcel. Sociologia & antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.


PEARSON, Geoff. An ethnography of English football fans: cans, cops and carnivals. Manchester: Manchester University Press, 2012.


Sobre o autor:

Rafael Willian Clemente é doutor em Ciências Sociais (PPGCS/UFRRJ), tendo pesquisado as relações de torcedores não organizados no “novo Maracanã” e a produção da história e memória na perspectiva urbana. É professor de História e Sociologia.


As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.


Os rituais de torcida são um tema já explorado em outros artigos do Bate-Pronto. Se você se interessa por ele, poderá gostar também do texto: Torcidas no estádio: deleites, seduções, violências. Como citar: CLEMENTE, Rafael Willian. Ritualizando a (des)crença: reflexões sobre o Mundial de Clubes. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.20, 2025. Ritualizando a (des)crença: reflexões sobre o Mundial de Clubes © 2025 by Rafael Willian Clemente is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International

 
 
 

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