Pensar e viver futebol: posições marginais no campo
- INCT Futebol
- há 6 dias
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Rafael Willian Clemente (UFRRJ)
No texto a seguir, o autor comenta a relação entre violência e futebol na América Latina a partir do confronto entre as torcidas do Independiente e do Universidad de Chile, ocorrido na Argentina, durante jogo da Copa Sul-Americana

Mais uma noite de futebol pela América Latina. Copa Libertadores, Copa Sul-Americana, campeonatos nacionais e regionais. Outra noite em que o “sangue latino” ferve – e escorre – nas arquibancadas, proporcionando um espetáculo digno dos horrores e do terror presentes nas mais dantescas obras cinematográficas do gênero. Desta vez, o palco do descabido evento foi o estádio Libertadores de América, situado em Avellaneda (Buenos Aires/Argentina), onde uma parte dos torcedores do Club Atlético Independiente (C.A.I.) protagonizaram junto aos adversários da Universidad de Chile (La U), aos olhos inoperantes de diversas autoridades da aérea de segurança pública, atos brutais de violência e desumanidade, no dia 20 de agosto de 2025.
Feita a conjuntura, não quero, porém, nesse resumido espaço, tratar da gravidade dos fatos. Eles já circulam na mídia esportiva especializada, nos espaços imagéticos das redes sociais de informação. Não pretendo tampouco reafirmar caminhos simplistas ou mesmo complexos para cuidar, amenizar, resolver um problema estrutural das sociedades. Esse percurso já foi feito por estudiosos, entidades torcedoras, intelectuais renomados e comprometidos com a causa em suas mais diversas áreas de atuação das ciências humanas e sociais. Quero é mencionar o ciclo que tende a se repetir – e a redundância é necessária ao efeito de ênfase – nos dias – quiçá semanas – seguintes a acontecimentos desse tipo.
As cenas da violência ganham o mundo. Repercutem em periódicos de toda América e também da Europa. As entidades nacionais detentoras da organização (sic) do futebol, encampadas nas personas dos seus “cartolas”, se manifestam em forma de notas de repúdio ou em discursos éticos-morais, imperativos de sanções imediatas. Os clubes, governos e outros tantos membros dos poderes aproveitam a onda para se afirmarem como detentores do civilismo contra a barbárie e mesmo como vítimas de uma turba descontrolada. Prometem políticas, sanções, caça aos “criminosos” e “bandidos travestidos de torcedores”. Uma fala recorrente. Um péssimo teatro. Bem possível a punição – justa, digna de passagem – de alguns personagens; sejam torcedores, autoridades imediatas que tenham se imiscuído das suas ações. Mas eis que o ciclo se encerra. Os jogos seguem, a vida segue e ninguém inserirá nesse ciclo vicioso e altamente rentável os mencionados estudiosos do tema. Ninguém procurará “os universitários”. E, se isso acontecer, será, tão somente, para alguma entrevista, algum texto opinativo, encomendado no calor do momento para que se afirmem velhas verdades.
Nenhuma intelectual, professoras universitárias, membros de inúmeros laboratórios de pesquisa, comporão grupos de atuação para aprimorar, realizar, analisar políticas públicas para o enfrentamento da delicada situação estrutural e estruturante do nosso futebol, das nossas cidades e países. O ciclo do capital financista não é capaz de encomendar um novo trabalho sob tais mazelas. Não é mesmo capaz de aproveitar-se de inúmeras pesquisas já realizadas e publicadas sob uns poucos cliques. Nas terras do tango, o sociólogo Pablo Alabarces é uma voz, dentre tantas, com trabalhos de excelência sobre as hinchadas, a violência urbana e as relações com outras esferas do poder. Puxando o tom do samba, podemos citar Bernardo Borges, Rosana Teixeira, Mauricio Murad e mais uma gama de sociólogos, antropólogos, historiadores; mas também juristas, especialistas em segurança pública e relações internacionais, que se debruçam sobre as temáticas do futebol, dos esportes em geral, entrecortados pelas questões da sociedade; visto que o esporte é a sociedade. Dela não está apartado. É parte. Reflexos côncavo e convexo dela. Mas tendo a crer, como parte desse time reserva que não será tão logo escalado, que a surdez seletiva dos donos do poder (da bola) é parte do jogo.
A aparente confusão, a crise constante, ela não é aleatória, esporádica. Ela é sistêmica. É fio condutor. E é nela e por ela que os meandros se fazem e se refazem. O ciclo, por nós julgado pernicioso, é uma corrente nessa engrenagem financista, exploratória, administrativista, falsamente meritocrática – se usarmos o conceito como em seu nascedouro. Nesse modelo, em que o dinheiro suplanta as emoções – e logo incentiva por elas a incivilidade em vez da educação das ações e reações – opera o aparente caos. Mas é só aparência. Ele é organizado para e por uma parcela, no âmago de um processo de modus operandi.
Esse modelo não excluiu totalmente tipos de torcedores das arquibancadas – sejam violentos ou pobres –, como no modelo financista e segregador da Inglaterra e de muitos campeonatos europeus. Também não criou um meio de manter torcedores populares nos estádios, dando a eles um lugar confortável e digno para que, com segurança, demonstrassem suas paixões ao seu clube de coração, de fervor, de devoção. A causa é demasiadamente complexa. Mas, se, na escalação, se contasse com a ciência e um projeto público sério e comprometido de um futebol total, com arquibancadas cheias, preços justos, ambientes confortáveis, seguros e respeitáveis, transporte público em qualidade e quantidade, os capitalistas ganhariam ainda mais, os torcedores sofreriam menos e uma sociedade capaz de refletir sobre suas mazelas, seus problemas e soluções poderia ser, pelo esporte, pelo futebol, repensada.
Mas, bem possível, que justiça e capitalismo num mesmo texto, numa mesma frase e com sentidos compartilhados em comum seja tão somente o que nomeamos de falsa salsa. “A revolução virá das arquibancadas”, estendia uma faixa poética num campo qualquer. Enquanto isso, os senhores da bola arquitetam novas e velhas formas de arbítrio. E a América Latina sangra.
Sobre o autor
Rafael Willian Clemente é doutor em Ciências Sociais pelo PPGCS/UFRRJ, em que pesquisou torcedores não organizados e sua relação com o estádio do Maracanã.
As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.
As relações entre torcidas e violências nos estádios são um tema recorrente nas análises sobre o futebol. Para ler mais a respeito, acesse o nosso texto: Torcidas no estádio: deleites, seduções, violências
1 Ver: https://www.clarin.com/deportes/cronologia-horror-avellaneda-paso-paso-enfrentamiento-barras-independiente-universidad-chile_0_WmkbwznFs3.html#google_vignette. Acesso em: 21 de ago. 2025. Também: https://www.latercera.com/el-deportivo/noticia/escandalo-y-horror-en-avellaneda-graves-incidentes-obligan-a-suspender-el-partido-entre-independiente-y-la-u/. Acesso em: 21 de ago. 2025.
Como citar CLEMENTE, Rafael Willian. Pensar e viver futebol: posições marginais no campo. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.31, 2025.
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