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Lapsos de razão em meio à paixão (ou o contrário?)

Isabelle Lima Barbosa (UFPA/INCT Futebol)

 

No texto abaixo, a autora faz um relato antropológico crítico sobre uma experiência vivida em um estádio do Pará, marcada por machismo, homofobia, mas também por orgulho regional e paixão pelo futebol.

Mosaico realizado pela torcida do Paysandu, em partida contra o Vila Nova, pela Série B, no Mangueirão, 24/11/2024. Foto: José Luís Totti/Ascom/Paysandu
Mosaico realizado pela torcida do Paysandu, em partida contra o Vila Nova, pela Série B, no Mangueirão, 24/11/2024. Foto: José Luís Totti/Ascom/Paysandu

Sempre fui levada a entender que o futebol é totalmente atrelado à paixão daqueles que torcem pelo time do coração. Na verdade, carrego esse sentimento no peito desde criança, levando em conta o meu fascínio antigo e duradouro pelo esporte. Então, quem sou eu para negar o caráter passional da coisa toda? Discordar não é minha intenção, até seria hipocrisia, mas o que tenho exercitado é ampliar o olhar para além de enxergar um bando de loucos em um mero momento de entretenimento. E, novamente, não que não seja. Só não é esse o ponto. Para ilustrar o que tenho observado sobre o assunto, reuni nesse texto reflexões espontâneas, feitas por mim, a partir de uma partida que acompanhei no estádio.

 

Divaguei bastante, um detalhe leva a outro, que abre discussões e interrogações até quase perder o fio da meada que as originou. Bem, no mínimo dentro de mim, ao final, tudo se funde subjetivamente; se desmembrar, temos três partes: território, sexualidade e gênero.

 

Território – Partida em casa, peça licença para entrar

 

Campeonato Brasileiro da Série B, 14ª rodada, o Paysandu (PA) recebia a Ferroviária (SP), na “Curuzu”, em Belém do Pará. Nada como um toró[1] para dar as boas-vindas ao adversário. No protocolo dos hinos, notei que o do estado do Pará foi cantado pela torcida com ênfase bem maior que o nacional. Achei interessante, já que vejo essa questão do pertencimento e identidade regionais fortemente associados ao futebol, fazendo deste um símbolo da cultura paraense. Afinal, se pouco há de relevância nacional atribuída aos clubes do Norte do país, lidos como “regionais”, faz sentido haver um recorte territorial no sentimento de orgulho também.

Torcedores do Paysandu, em partida contra a Ferroviária, no estádio Leônidas Castro, “Curuzu”, Série B de 2025. Na imagem superior: torcida organizada por bairros da Região Metropolitana de Belém – Cabanagem, Canudos, Paar, Terra Firme. Nas imagens inferiores: símbolos territoriais (Pará/Brasil) sendo vinculados ao clube. Fotos: José Luís Totti/Ascom/Paysandu
Torcedores do Paysandu, em partida contra a Ferroviária, no estádio Leônidas Castro, “Curuzu”, Série B de 2025. Na imagem superior: torcida organizada por bairros da Região Metropolitana de Belém – Cabanagem, Canudos, Paar, Terra Firme. Nas imagens inferiores: símbolos territoriais (Pará/Brasil) sendo vinculados ao clube. Fotos: José Luís Totti/Ascom/Paysandu

Vale destacar que, embora exista tal vínculo, é comum haver torcedores paraenses fanáticos por mais de um clube. Normalmente, quem nasce no Pará torce para Paysandu ou Remo e por mais algum do Rio de Janeiro ou de São Paulo, um de cada estado até, fora os times estrangeiros. Eu, por exemplo, além de bicolor[2], sou vascaína e são-paulina. Tem quem ridicularize. Hoje compreendo que não é indecisão ou esperteza ser “poliamorosa” ao torcer. As temporadas da dupla Re-Pa nem sempre são preenchidas por torneios longos e almejados. Há anos não disputam a Série A nem avançam muito na Copa do Brasil. No Brasileirão 2025, a “elite”, não há sequer um representante nortista; juntando cariocas e paulistas, são dez de vinte. Libertadores? Só uma participação alviceleste, sem título, mas comemorada como se fosse  vencemos o Boca Juniors na La Bombonera[3]. Sem contar o mais primordial: nossos jogos raramente são televisionados.

 

Operada por uma emissora pública do estado, há somente uma transmissão garantida em canal aberto, a do Campeonato Paraense, capaz de alcançar picos de audiência que ultrapassam 40 pontos na capital. O Parazão é o carro-chefe da TV Cultura do Pará, que produz chamadas especiais mesclando o esporte aos nossos ritmos, ao nosso vocabulário, aos nossos cenários, ao nosso cotidiano, tonificando o entrelaçamento que citei antes.

 

Times com sangue nos olhos, cobrados, enquanto em outros lugares algumas rodadas dos estaduais parecem ser encaradas como pré-temporada para dar ritmo a jogadores da base. O motivo é lógico, clubes do eixo sul-sudeste acumulam competições grandes e desdobram-se entre elas. Agora, imagina, para um apreciador do futebol, não ter um time para torcer em um Mundial? Não ter um time para admirar e assistir na Globo? Quem não quer se sentir representado? O caso do futebol ilustra o que ocorre em qualquer editoria quando o tópico é diversidade regional: sobreposição de alguns em detrimento de muitos. Desigualdades de visibilidade e oportunidades, que são inversamente proporcionais à entrega da torcida, que lotava o estádio em uma segunda-feira, para ver o último colocado; mas também não encontro contradição sendo um gol do Paysandu contra a Ferroviária na Cidade das Mangueiras[4] comemorado por um torcedor na mesma proporção que o próprio comemora um marcado pelo Bruno Henrique (FLA) contra o Chelsea na Filadélfia. O que se quer é torcer, o que não exclui o pensar sobre onde se torce.

 

Sexualidade – Refletir dois segundos nem é tão difícil assim, acredite!

 

Com a intensidade da chuva, antes mesmo do apito inicial, também chegaram os primeiros gritos homofóbicos, dirigidos ao árbitro e motivados pelo atraso. Como já se espera, após a bola rolar, as falas agressivas continuaram. Qualquer marcação indesejada ou jogada frustrada era seguida de comentários associando o lance à homossexualidade. Postura padrão nas arquibancadas.


Bandeiras do arco-íris em alusão ao Orgulho LGBTQIAPN+. A primeira no gramado de jogo pelo Campeonato Paraense (2023); a segunda exibida por torcedores do Paysandu na arquibancada do Mangueirão (2017). Incluir garante que o espaço seja acolhedor? Fotos: Rodolfo Valle e César Magalhães/Agência Pará
Bandeiras do arco-íris em alusão ao Orgulho LGBTQIAPN+. A primeira no gramado de jogo pelo Campeonato Paraense (2023); a segunda exibida por torcedores do Paysandu na arquibancada do Mangueirão (2017). Incluir garante que o espaço seja acolhedor? Fotos: Rodolfo Valle e César Magalhães/Agência Pará

Percebo, analisando a expressão corporal dos autores (unicamente homens) ao redor, que, ao se utilizarem da homofobia como meio para diminuir alguém no gramado, sentem-se aliviados, satisfeitos. A depender do teor, caso busquem ser “cômicos” (haja vista as “piadas” homofóbicas), também ficam na expectativa de serem validados por outros homens. Validação que ocorre em uma troca de olhares entre um que está fileiras abaixo e outro que está mais acima, que nem se conhecem, mas se sinalizam de algum modo, riem entre si, conectam-se, reforçam-se, firmam um pacto de homem-para-homem. Aconteceu mais de uma vez, é um hábito. Nem depende da escalada da raiva, na qual esta cresce até explodir na forma de insulto; manifestam-se a qualquer momento, até gostam quando paira certo silêncio, pois assim sua voz violenta ecoa e ganha o protagonismo que parece buscar desde o princípio.

 

Aparentemente, todo esse contexto os faz sentir-se mais homens, depositando a confirmação ou não da própria masculinidade em tais atitudes. Quando são ignorados ou, principalmente, coibidos, é como se o ciclo da agressão não se fechasse. É raro, mas acontece. A exemplo, um menino, de cerca de dez anos, acompanhado de um rapaz de no máximo vinte, quando ouviu do mais velho algo como “vai embora para tua casa, seu juiz v*ado”, logo retrucou com “huumm, isso aí é LGBTfobia”. A criança nem aparentava ter a intenção de corrigir, não se expressou em um tom duro, pelo contrário, talvez estivesse apenas refletindo consigo ou relembrando um aprendizado prévio construído no dia a dia. Fiquei surpresa, pois o provável seria que reproduzisse aquilo que tanto estava ouvindo. Ele fez, de forma simples, o que muitos marmanjos fazem parecer difícil: parou e pensou por dois segundos. O acompanhante permaneceu calado e assim era um poeta. Ambos estavam localizados atrás de mim. Aquela resposta do garoto me soou como um respiro diante da ignorância. Era 30 de junho, dois dias depois da data internacional que celebra o orgulho LGBTQIAPN+.

 

Gênero – Se não for pela consciência, que seja pelo embaraço

 

Situações como a do tópico anterior relacionam-se ao fato de estádios de futebol serem espaços, sobretudo, marcados pela hegemonia heteronormativa, que também é pilar do machismo estrutural. No entanto, apesar de, naquele momento, ver-me rodeada majoritariamente por homens, é nítido o aumento da presença feminina nas arquibancadas da Curuzu. “Os ingressos promocionais para mulheres nos jogos dentro de casa estão dando resultado” – pensei.

 

O efêmero pensamento de satisfação deu lugar à nova indignação pessoal, quando percebi rapazes ao meu lado, igualmente indignados, mas por motivo oposto: as “bicolindas”, grupo de líderes de torcida do Paysandu, que fica à beira das quatro-linhas, estavam fora da visão deles. Não é surpresa aquelas mulheres com roupas curtas e coladas serem tratadas como “parte do show” incluída no valor do ingresso, só não imaginava o nível da importância que lhes é conferida, a ponto de provocar resmungos masculinos generalizados caso não estivessem à vista. Inclusive, já se tratando de mulheres presentes no campo, além das “bicolindas”, era raro visualizar outras. Contei duas, da imprensa, e uma terceira, atuando como bandeirinha  que, quando indicou um impedimento, imediatamente foi chamada de “sapatão” por um torcedor.



Parede externa da Curuzu, que homenageia torcedoras do Paysandu: “lugar de mulher é onde ela quiser”. Abaixo, uma bandeira da Torcida Organizada Fúria Bicolor, estampada com personagens femininas, durante a mesma partida contra a Ferroviária. Realmente basta querer-estar para frequentarmos estádios de futebol? Fotos: José Luís Totti/Ascom/Paysandu
Parede externa da Curuzu, que homenageia torcedoras do Paysandu: “lugar de mulher é onde ela quiser”. Abaixo, uma bandeira da Torcida Organizada Fúria Bicolor, estampada com personagens femininas, durante a mesma partida contra a Ferroviária. Realmente basta querer-estar para frequentarmos estádios de futebol? Fotos: José Luís Totti/Ascom/Paysandu

 

Novamente, atentei-me a um diálogo alheio. Fofoqueira, estudante de comunicação que sou. Para contextualizar, durante o intervalo da partida, foi realizada uma dinâmica com alguns sócios-torcedores no gramado, em que cada pessoa deveria chutar em direção à baliza, como num pênalti. Vencia quem finalizasse o mais próximo da linha do gol sem que a bola a ultrapassasse. Uma mulher ganhou a brincadeira. O prêmio era uma camisa oficial do Papão[5]. Eis que ouço: “égua, perderam pra uma mulher? tá fod#”. Nem se faz necessário identificar aqui o gênero do emissor. O colega dele retrucou: “cara, coragem falar isso com tantas mulheres ao teu redor, não tá vendo?”. Quebra de expectativa: um brother o contrariou. Silêncio constrangedor. O principal constrangido tentou se justificar, e só piorou, alegando que para uma mulher certamente seria mais difícil chutar uma bola, se comparado a homens, que têm isso como hobby. Mudaram de assunto. Mas, para mim, o assunto se destrinchou, algo fez mais sentido. A promoção de ingressos para mulheres e consequente aumento desse público nos estádios não se restringe a estimular o interesse futebolístico e diversificar espectadores. O simples estarmos-presentes, mesmo sem dizer uma palavra, intimidou. É provável que, na ausência de torcedoras por perto, a frase não seria contestada e o papo-cueca fluiria com naturalidade. Que se envergonhem, portanto.

 

Conclusão – Quando tudo se funde

 

A chuva não dava trégua, natural da nossa região. Em resumo, eu estava ensopada, encoberta apenas pelas inúmeras manifestações machistas e homofóbicas, que, assim como a chuva, não cessavam. É aquilo: pessoas que integram a comunidade LGBTQIAPN+ e mulheres, no geral, quando ocupam os estádios de futebol, estão no front diante dos discursos de ódio dos quais são alvo. Individualmente, vivenciar este lado do jogo nos ofende e fere. Contudo, avaliando por uma perspectiva coletiva de resistência, o próprio ato de grupos-alvo adentrarem espaços assim, por mais rudes que estes sejam, ainda representa uma forma de contrapor, a conta-gotas, o comportamento social que ali vigora.

 

Segue o jogo, metade do segundo tempo. Paysandu amargando a lanterna e perdendo mais uma, os sudestinos levavam os três pontos. Mas só acaba quando termina. O placar, além do restante, fazia eu me perguntar constantemente se foi uma escolha acertada ter ido. Era a minha primeira vez sozinha na Curuzu. Saí de casa para pegar uma gripe, ver meu time perder e me sentir atacada? Me arriscando em vão? Ali era o meu lugar mesmo? Se não tivesse ido e quisesse acompanhar pela TV, precisaria ser assinante de plano plus premium. Na rede aberta, restaria assistir Manchester City e Al Hilal. Ah, pelo menos vestiria roupas sequinhas e sem lidar com os caras inconvenientes ao pé do ouvido. A Curuzu era mesmo o meu lugar? Sim, era  viramos o placar e vibrei, apaixonada, sob àquela chuva persistente. Sou paraense, mulher, bissexual, e, óbvio, bicolor, de corpo e alma lavados.

Placar final da partida. Tem vezes que virar o jogo é urgente. Há luz no fim do túnel? Fico na torcida. Foto: José Luís Totti/Ascom/Paysandu
Placar final da partida. Tem vezes que virar o jogo é urgente. Há luz no fim do túnel? Fico na torcida. Foto: José Luís Totti/Ascom/Paysandu

Sobre a autora

 

Isabelle Lima Barbosa é da Amazônia, nortista, natural de Belém do Pará, onde reside. Graduanda em Comunicação Social – Jornalismo, na Universidade Federal do Pará. Bolsista de Iniciação Científica do INCT Futebol.

 

As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.

 

Relatos de experiência e paixão pelo esporte são sempre leituras fascinantes. Leia também este: Dérbi multissituado em três atos


[1] Gíria paraense com significado de chuva muito forte, marca do estado.

[2] Outra maneira de se chamar torcedores do Paysandu.

[3] Copa Libertadores da América de 2003, Paysandu venceu por 1 a 0, gol de Iarley, na Argentina.

[4] Apelido dado à cidade de Belém (PA).  [5] Apelido dado ao Paysandu.


Como citar BARBOSA, Isabelle Lima. Lapsos de razão em meio à paixão (ou o contrário?). Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.28, 2025. Lapsos de razão em meio à paixão (ou o contrário?) © 2025 by Isabelle Lima Barbosa is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International


 
 
 

4 Comments

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Guest
há 7 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Obrigado por esse texto, espero cada vez mais sermos uma Isabelle com coragem de ir prestigiar seu time do coração, sem sentir medo ou intimidação!!

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Guest
há 7 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Ótimas reflexões! Tenho poucas experiências em jogos de futebol, apesar de gostar muito, mas já foram grandes momentos de (re)pensar tantas demarcações e preconceitos. Confesso que a própria energia da torcida, aquela multidão que torce e vibra em uníssono, já coloca a gente num lugar em que pensar criticamente parece mais difícil... acho que a multidão, o estar-junto, tem um poder acionador enorme, existe uma tendência muito grande de repetir o que já foi normalizado ao nosso redor. A gente passa a ser um só, e esse UM é um reflexo coletivo (um reflexo do que foi problematizado no texto). Adorei!

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Giovanna M.
há 7 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Por mais Isabelles Barbosa em campo, por mais análises que saiam do óbvio. Texto maravilhoso!

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Isabella S.
há 8 horas
Rated 5 out of 5 stars.

Boa reflexão sobre o papel que nós mulheres e pessoas LGBTQIA+ somos colocados enquanto estamis em espaços tradicionalmente heretonormativos. As violências são muitas, mas é sempre importante lembrar que esses lugares também são direito nosso. Ótimo texto, parabéns!

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