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Futebol de poesia, cultura futebolística e gratidão única a um ídolo: primeiras reflexões sobre minha pesquisa na Itália

Ronaldo Helal



A ideia de nação brasileira, muito tímida no século XIX, começou a ganhar força no início do século XX, durante e após a Semana de Arte Moderna de 1922. O futebol, que deixou de ser uma prática amadora e começou a se tornar um esporte profissional no início dos anos 1930, teve um papel preponderante nesse processo. O jornalista Mario Filho, nome oficial do estádio Maracanã, e o cientista social Gilberto Freyre foram dois importantes artífices na junção do futebol, sobretudo da seleção brasileira, com a nação.


A partir de um artigo de Gilberto Freyre, publicado no Diário de Pernambuco, em 17 de junho de 1938, a equação “seleção + nação brasileira” se tornou evidente e passou a ganhar força, fazendo com que, alguns anos mais tarde, o dramaturgo e cronista esportivo Nelson Rodrigues a alcunhasse de “a pátria de chuteiras”. 


Meu interesse no tema me levou a uma série de reflexões sobre as narrativas da imprensa sobre a seleção masculina de futebol em períodos de Copas do Mundo. Ao mesmo tempo, passei a pesquisar as narrativas do estrangeiro sobre nós tendo como foco o futebol, principalmente a seleção. A opinião de fora parece realmente ter tido muita importância na construção da identidade nacional brasileira. A Semana de Arte Moderna de 1922, mencionada anteriormente, reuniu um grupo de intelectuais e artistas que queriam romper com as influências da cultura europeia, principalmente francesa, e, assim, inspirar-se no que seriam as nossas raízes. No entanto, o olhar de fora continuou sendo preponderante no Brasil.


Em 2005 e 2006, realizei pesquisa de pós-doutorado em Buenos Aires, justamente para estudar as narrativas da imprensa argentina sobre o futebol brasileiro durantes as Copas do Mundo de 1970 a 2002. Entre junho e agosto de 2017, fiz um estágio sênior de pesquisa na França, investigando as narrativas da imprensa francesa sobre a seleção brasileira. E agora me encontro em Nápoles, para outro estágio sênior, com o objetivo de pesquisar as narrativas da imprensa italiana sobre nossa seleção.


Sobre as pesquisas na Argentina e na França, o que encontramos foram narrativas carregadas de estereótipos sobre a cultura brasileira, sendo que as da imprensa francesa eram carregadas de um “eurocentrismo” e “exotismo”, que depositavam na suposta natureza imaginada dos brasileiros a explicação para o sucesso e o fracasso da seleção1


O material coletado na Emeroteca Tucci de Nápoles abrangeu todas as partidas entre Brasil e Itália nas Copas do Mundo: 1938, 1970, 1978, 1982 e 1994. Os jornais selecionados foram La Gazzetta Dello Sport e Corriere della Sera. Uma das coisas que tinha em mente, além das reflexões sobre as pesquisas anteriores, era um artigo de 1971 do cineasta Pier Paolo Pasolini, intitulado “Il calcio è un linguaggio con i suoi poeti e prosatori”, em que o futebol brasileiro é visto como um futebol de poesia.


A análise do material está ainda no início, mas já foi possível investigar as narrativas dos dois jornais durante a Copa de 1938, um Mundial emblemático para a construção de nossa identidade, que gerou o famoso artigo de Gilberto Freyre, mencionado antes.


De uma forma geral, as matérias de 1938 destacam as habilidades dos brasileiros, chamados de malabaristas da bola, mas ressaltam a suposta carência de jogo coletivo e organização. Falam até em acrobacias inúteis. E dizem que a Itália merecia ter vencido por 3 a 0. Ressaltam também a ausência de Leônidas, o “malabarista dos malabaristas” (“il giocoliere dei giocolieri”), mas questionam se o resultado teria sido diferente.


Em certo sentido, esse tipo de narrativa possui, à primeira vista, alguma semelhança com o que encontrei no L’Equipe da França. Mas não foi ainda possível observar uma narrativa etnocêntrica, mesmo quando se verifica a crítica a uma suposta carência de jogo coletivo. A ideia de um futebol de poesia é latente em 1938 e deve ter ganhado força após a conquista do tricampeonato em 1970, justamente vencendo a Itália na final por 4 a 1. As narrativas italianas em 1938, apesar de enaltecerem a habilidade dos brasileiros, não se curvam a ela em nenhum momento e ainda enfatizam que o placar de 2 a 1 para a Itália deveria ter sido maior.


O restante do material, ainda que não analisado, parece seguir a mesma tendência. Devemos ter em mente que a tradição futebolística e de conquista nesse esporte é maior aqui do que na França. A Itália já era campeã do mundo e estava disputando o bicampeonato (o que acabou acontecendo). Dando uma olhada no material de 1970, Copa do Mundo que deve ter influenciado Pasolini a escrever o artigo mencionado acima, as narrativas italianas buscavam diminuir a suposta diferença técnica entre as duas equipes, apostando em seus jogadores e em seu suposto estilo, conhecido aqui como catenaccio, um jogo defensivo que aposta nos contra-ataques. Mesmo após a derrota por 4 a 1, algumas matérias enfatizavam que a partida foi equilibrada até metade do segundo tempo, quando a seleção brasileira marcou o segundo gol.


Durante este período, tenho conversado com o sociólogo Luca Bifulco, quem me convidou para realizar meu projeto na Università degli Studi di Napoli Federico II, e com alguns de seus colegas e pesquisadores. Nessas conversas, fica evidente que a partida mais emblemática para os italianos, considerando os confrontos com o Brasil, é a de 1982, quando a Itália derrotou a seleção brasileira por 3 a 2. Já dei uma olhada rápida nesse material e vi que se ressalta ainda um quarto gol supostamente mal anulado pelo árbitro.


Antes de vir para cá, me orientei também com o semiólogo Paolo Demuru, da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Demuru publicou em 2014 o excelente livro Essere in gioco: calcio e cultura tra Brasile e Italia. Certamente, o livro merece uma segunda leitura, que será realizada após o meu retorno ao Brasil. É dele também o artigo Malandragem vs Arte di arrangiarsi: Stili di vita e forme dell’aggiustamento tra Brasile e Italia, que mostra semelhanças e diferenças nessas duas representações dos cotidianos dos dois países.


O deslocamento para outros países e o contato com diferentes culturas viabilizam a construção de novas perspectivas interpretativas sobre a sociedade na qual vivemos. Estar imerso no país onde se pesquisa as narrativas é uma forma crucial de ter acesso à produção de conhecimento2.


Por fim, nesse momento, não poderia deixar de destacar a minha surpresa ao ter a sensação de que a idolatria a Maradona na cidade de Nápoles é maior do que em Buenos Aires. Luca Bifulco e Pablo Alabarces já escreveram a respeito. Mas é realmente algo que não tem como passar despercebido. Maradona está em quase todos os lugares. Seu gigantismo está estampado nas ruas, paredes, murais, quiosques, bandeiras, flâmulas, camisas, bonecos e até em uma famosa bebida aqui, a Maradona Spritz. Todo o debate sobre o melhor da história tende a ficar ofuscado sobre quem foi o mais importante. A qualificação de “o melhor” é frequentemente enviesada pelos afetos que temos aos nossos ídolos. No entanto, o certificado de “o mais importante” tenderia a ser mais objetivo. 


A importância de Maradona para os napolitanos é imensa. A cidade sempre sofreu e sofre até hoje preconceito do norte do país. Nos estádios, se escutam cânticos ofensivos e até faixas agressivas contra os napolitanos. Maradona trouxe orgulho para a cidade, reforçou sua identidade e, não menos importante, conquistou títulos importantíssimos. A gratidão a ele é incomensurável.


 1 Os resultados desses projetos podem ser conferidos em Helal (2007) e Helal (2019, 2021).

2  Ver a respeito em Hollanda (2022).


 

REFERÊNCIAS:


HELAL, Ronaldo. Exotismo e irracionalidade. Alceu, v. 21, p. 30-51, 2021.


HELAL, Ronaldo. Jogo bonito y fútbol criollo: la relación futbolistica Brasil-Argentina en los medios de comunicación. In: Alejandro Grimson (Org.). Pasiones nacionales: politica y cultura en Brasil y Argentina. Edhasa, 2007, v. 1, p. 349-385.


HELAL, Ronaldo. Las narrativas de la prensa francesa sobre el fútbol brasileño en los mundiales de 1958 y 1998. Ludicamente, v. 8, p. 1-20, 2019.


HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal. Alceu, v. 22, p. 143-164, 2022.


 

SOBRE O AUTOR:

Ronaldo Helal: Professor Titular da UERJ

 

COMO CITAR:

HELAL, Ronaldo. Futebol de poesia, cultura futebolística e gratidão única a um ídolo: primeiras reflexões sobre minha pesquisa na Itália. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.15, 2024.



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