Entre a paixão e o lucro: impactos da SAF na identidade dos clubes brasileiros
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Rafaela Marques Rodrigues dos Santos (UFBA)
No texto a seguir, a autora discute os desafios para a implementação das SAFs sem perder a história e a identidade dos times.

O futebol, mais do que um esporte, é uma manifestação cultural que mobiliza paixões, constrói identidades coletivas e atravessa gerações. No Brasil, essa dimensão cultural sempre esteve intrinsecamente ligada aos clubes de futebol, que funcionam como símbolos locais e nacionais. Do mesmo modo, esse esporte sempre esteve profundamente enraizado em aspectos culturais e sociais que transcendem o campo de jogo. Contudo, a crescente profissionalização do futebol mundial e a necessidade de adaptação a um mercado altamente competitivo levaram à implementação de novos modelos de gestão, como a Sociedade Anônima do Futebol (SAF).
Os clubes não são apenas entidades esportivas, mas verdadeiros símbolos de identidade para suas comunidades, mobilizando paixões e laços que atravessam gerações. Tradicionalmente organizados como associações civis sem fins lucrativos, esses clubes criaram uma relação direta com seus sócios e torcedores, marcada pela participação coletiva nas tomadas de decisões.
Contudo, com o aumento da competitividade no cenário esportivo global e os desafios financeiros enfrentados por diversas instituições, tornou-se evidente a necessidade de uma modernização nas estruturas de gestão. Nesse contexto, a criação do modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF) representa uma ruptura significativa com o passado associativo, introduzindo uma lógica empresarial e novos atores no comando dos clubes.
A Sociedade Anônima do Futebol (SAF) é um modelo jurídico criado pelo Congresso Nacional em 6 de agosto de 2021, por meio da Lei 14.193/2021, sendo conhecida como “Lei da SAF”. Inspirado em práticas internacionais, a SAF permite que clubes adotem uma estrutura empresarial, tornando-se sociedades anônimas, estimulando a transformação das associações civis sem fins lucrativos – formato dos principais clubes tradicionais – em clubes-empresa.
Diferentemente do modelo tradicional de associação civil sem fins lucrativos, a SAF busca sanar dívidas, atrair novos investimentos e modernizar a gestão dos clubes. Embora essa mudança traga novas possibilidades econômicas, também gera desafios relacionados à manutenção dos valores históricos, culturais e à preservação da identidade clubística, visto que mexe com a própria relação histórica do futebol.
Este texto busca analisar como a implementação das SAFs tem impactado na relação entre as associações tradicionais, seus torcedores e a identidade dos clubes, abordando os desafios e potencialidades dessa nova estrutura. Compreender essa relação é fundamental para avaliar se é possível alinhar tradição e modernidade sem comprometer a essência dos clubes, que são patrimônios afetivos de seus torcedores.
Do clube associativo à SAF
Os clubes de futebol brasileiros surgiram, em grande parte, como associações civis sem fins lucrativos, onde os sócios-torcedores possuíam voz ativa nas tomadas de decisões juntamente à gestão. Esse modelo fomentou uma relação simbólica e emocional entre os torcedores e o clube, que ia além do aspecto competitivo, moldando uma relação carregada de amor e paixão.
Com a profissionalização crescente e a globalização do futebol, muitos clubes enfrentaram crises financeiras e estruturais. A lei que criou a figura da SAF permitiu que os clubes se transformassem em empresas, atraindo maiores investimentos privados e buscando efetivar uma gestão “mais profissional” para alcançar o sucesso, o que não necessariamente significa seu cumprimento apenas por ser SAF.
Porém, a transição para o modelo SAF nem sempre significa a extinção das associações que historicamente comandaram os clubes. Em muitos casos, essas associações mantêm participações acionárias relevantes e, “teoricamente”, devem continuar desempenhando um papel importante na preservação de valores históricos e culturais. Essa coexistência cria uma dinâmica complexa entre os interesses empresariais e as tradições associativas.
Uma das principais vantagens em manter a porcentagem ligada às associações é garantir a preservação do elo histórico e cultural com a comunidade torcedora. As associações devem atuar como “guardiãs” da identidade do clube, garantindo que decisões empresariais respeitem tradições e valores consolidados ao longo de décadas, como a história do clube, o escudo, a identidade e a relação clube-torcedor-comunidade.
No entanto, também surgem tensões e desafios nessa relação. A lógica empresarial imposta pela SAF prioriza resultados financeiros e performance esportiva, enquanto as associações frequentemente valorizam aspectos imateriais, como a preservação do patrimônio histórico e a manutenção de uma gestão democrática.
O principal interesse de um clube ao se tornar uma empresa é a profissionalização da gestão. Seu objetivo central é maximizar os lucros por meio de uma administração eficiente, capaz de captar investimentos, atrair patrocinadores e otimizar diversas fontes de receita, como direitos de transmissão, bilheteira, venda de produtos licenciados, merchandising e outras. Isso transforma, gradualmente, a relação de torcedor para consumidor.
SAF: conflito de identidade e desafios para manter a paixão
Sabe-se que a principal finalidade das mudanças possibilitadas pela Lei da SAF está ligada ao apoio aos clubes para resgate financeiro, considerando que os clubes do futebol brasileiro, em sua maioria, apresentam dívidas milionárias e problemas financeiros (Soares et. al., 2022. p. 5).
Em muitos clubes, principalmente aqueles que enfrentam dívidas severas, gestão ineficiente e dificuldades financeiras, a adoção do modelo SAF pode ser vista como uma solução para a sustentabilidade e o futuro do clube. Para os torcedores, isso pode ser interpretado como uma maneira de recuperar o clube de uma possível falência ou de um cenário de insustentabilidade financeira, o que provoca um sentimento de esperança.
Apesar desse modelo surgir como uma “salvação” para os problemas que ultrapassam os 90 minutos em campo, deve-se observar a relação de paixão entre clube-torcedor. Esta que sempre foi destacada pelo antigo modelo que regia os clubes e é considerada um dos patrimônios mais importantes de um clube de futebol. Isso porque a identidade de um clube advém da sua relação, participação e construção com a própria torcida ao longo da história, e mudanças que possam afetar esse laço podem ser visualizadas tanto como positivas quanto como negativas.
Um clube ser adquirido por um investidor que possua capital para sanar os problemas e garantir estabilidade financeira pode ser visto como a solução ideal ou, até, como garantia de sucesso absoluto. Isso porque, finalmente, ele obteria recursos para dedicar-se à performance esportiva e, consequentemente, alcançar resultados. Contudo, pensar nas mudanças e no quanto elas podem afetar a própria relação do clube com o torcedor é um ponto relevante, considerando que a transformação do clube em uma entidade puramente comercial – que prioriza e visa somente o lucro e a performance – pode reduzir o sentimento de pertencimento e as emoções genuínas dos torcedores, que muitas vezes enxergam o clube como algo mais do que uma simples empresa.
A principal preocupação dos torcedores é que a transformação em SAF possa resultar em uma mercantilização excessiva do futebol, em que o clube seja tratado como uma mera empresa cujo objetivo principal é gerar lucros, e não representar uma comunidade, uma cultura ou uma história. Principalmente quando a sua gestão vem marcada e controlada por investidores estrangeiros, gerando uma possível desnacionalização e comprovando que a prioridade de um clube-empresa é apenas o lucro, e não a manutenção da sua identidade.
[...] A lei preocupou-se em encontrar uma fórmula para resolver as eternas dívidas dos clubes, não em associar o novo modelo institucional a um projeto de desenvolvimento econômico e esportivo do futebol brasileiro, sequer cuidando de manter o nosso futebol sob controle de investidores nacionais. Antes pelo contrário... (Dantas; Leo, 2023, p. 143)
A desnacionalização abre uma questão importante relacionada à aquisição de clubes nacionais por investidores estrangeiros: como manter a preservação da identidade e cultura do clube sem criar um vazio emocional entre o clube e sua torcida?
Quando clubes nacionais são adquiridos por investidores internacionais, a desconexão emocional entre o clube e seus torcedores pode ser um risco significativo, especialmente quando as decisões de gestão se afastam da realidade local e dos valores históricos do clube.
Como afirmam Marcos Dantas e Luiz Leo (2023), “é como indústria que precisamos olhar para o futebol, sem mais romantismos”. Nos modelos de gestão de clubes controlados por investidores estrangeiros, frequentemente os torcedores perdem poder de decisão. A tradicional gestão associativa, em que os torcedores, através das associações, podiam influenciar as decisões do clube, é substituída por um modelo mais corporativo. Isso significa que o torcedor deixa de ter voz ativa no futuro do clube, com decisões sendo tomadas de forma centralizada por investidores, empresários ou diretores que não necessariamente possuem uma conexão emocional com o clube.
Manter a identidade cultural do clube enquanto se busca crescimento global e sucesso financeiro é um desafio complexo. Muitas vezes, os investidores estrangeiros vêm com a intenção de maximizar lucros, e isso pode levar a mudanças estratégicas que não consideram adequadamente o sentimento de pertencimento dos torcedores.
A SAF e o seu impacto na formação educacional de jovens atletas
A implementação da SAF nos clubes de futebol traz mudanças profundas que não se limitam apenas à gestão financeira e à profissionalização administrativa. Um dos aspectos fundamentais afetados por essa transformação é o processo educacional de jovens atletas em formação, especialmente nas categorias de base. Esses jovens representam o futuro esportivo dos clubes e a forma como são preparados reflete diretamente na construção de suas identidades esportivas e pessoais.
A preocupação com a formação integral dos atletas vem ganhando destaque crescente nos clubes de futebol contemporâneos. Não se trata apenas de desenvolver as habilidades técnicas dentro de campo, mas também de proporcionar uma formação educacional, emocional e social que prepare esses jovens para os desafios da vida esportiva e pessoal. Com a chegada da SAF, essa abordagem tende a se fortalecer ainda mais. A lógica empresarial que acompanha esse novo modelo de gestão, incentiva uma visão estratégica sobre a base, considerando-a uma “joia” para o clube: “O futebol e os esportes em geral ainda seguirão sendo instrumentos voltados à formação educacional, através do desenvolvimento integral do indivíduo, bem como da sua formação para o exercício da cidadania e do lazer” (Dantas; Leo, 2023, p. 145).
Contudo, é importante pontuar que a preocupação com a formação educacional dos atletas em formação não pode ser resumida apenas ao cumprimento das obrigações escolares. Contabilizar a frequência escolar ou acompanhar o rendimento são fatores importantes e que contam muito para o nível de aprovação final daquele atleta, além de contribuírem bastante para os resultados e avaliações de um clube formador. Afinal, um bom atleta também precisa ir bem na escola.
O futebol, em seu lugar de prática esportiva imediatista, exige e necessita de resultados. Afinal, como seremos os melhores em formação de atletas se não temos o nível máximo de aprovação escolar?
É possível que um atleta de futebol em formação compreenda todas as suas obrigações, inclusive escolares, afinal, sua rotina exige disciplina e cumprimento de regras. E a escola, sim, acaba entrando no fluxo do cumprimento de regras. Afinal, no novo cenário exigido pelo futebol, em que cada vez mais os clubes têm se tornado empresas e, evidentemente, o lucro e os bons resultados são os pontos que mais contam, especificamente nas categorias de base, o desenvolvimento educacional influenciará, sem dúvidas, o desempenho em campo, ainda que lhe custe punições.
Entretanto, é importante destacar que “o fato de um time se converter em clube-empresa e ser administrado por profissionais não significa que o seu sucesso esteja garantido” (Proni, 1998, p. 247). Para se tratar de formação de atletas e desenvolvimento humano, é necessário falar sobre juventude e humanização, ponto que se perde em grande tendência, visto que, como qualquer outra empresa, a prioridade é o lucro e o aumento de resultados, ignorando todo o caminho processual que exige, em sua teoria, a prática esportiva do futebol.
Outro ponto relevante é a necessidade de preservação da identidade clubística no processo formativo. Quando jovens atletas crescem dentro de um clube que valoriza sua história e tradições, eles passam a incorporar esses valores em suas trajetórias profissionais. Isso fortalece a ligação com a torcida e ajuda a manter viva a cultura do clube, mesmo em um cenário de modernização e exigências mercadológicas.
Portanto, é imprescindível que a SAF não veja a formação de atletas apenas como um negócio, mas como um processo educativo integral que respeite a dimensão cultural do futebol. A continuidade dessa prática contribuirá para preservar os elementos simbólicos que tornam cada clube único e garantem sua relevância tanto no cenário esportivo quanto social.
Referências:
DANTAS, Marcos; LEO, Luiz. Futebol-empresa: o capitalismo chegou, afinal, no futebol brasileiro. Revista Eptic, São Cristóvão, SE, v. 25, n. 1, p. 129-148, 2023.
PRONI, Marcelo Weishaupt. Esporte-Espetáculo e Futebol-Empresa. 1998. 275f. Tese (Doutorado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1998.
SOARES, Bruno Pinto et al. A sociedade anônima do futebol (SAF): disposições introdutórias e constituição. In: SOUZA, Gustavo Lopes Pires de; RAMALHO, Carlos Santiago da Silva (Orgs.). Sociedade anônima do futebol: primeiras linhas. Belo Horizonte: Expert, 2022. p. 13-36.
Sobre a autora:
Rafaela Marques Rodrigues dos Santos é licenciada em Pedagogia e mestranda em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), pesquisadora do Grupo de Estudos Cotidiano, Resgate, Pesquisa e Orientação (FACED/UFBA) e colaboradora do Grupo de Psicologia do Esporte da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.
Um dos aspectos tratados neste texto é a formação de futebolistas. Se você tem interesse por esse tema, irá gostar também do nosso texto: Notas para pensar los sueños de los futbolistas juveniles. Como citar: SANTOS, Rafaela Marques Rodrigues dos. Entre a paixão e o lucro: impactos da SAF na identidade dos clubes brasileiros. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.19, 2025. Entre a paixão e o lucro: impactos da SAF na identidade dos clubes brasileiros © 2025 by Rafaela Marques Rodrigues dos Santos is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International
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