Eduarda Moro
Das coisas para as quais retornamos, uma em específico marcou minha vida enquanto pessoa que pergunta. Fui uma criança com pequenas obsessões. O programa Mundo da Lua (1991), da TV Cultura, talvez tenha sido a maior destas. Nos primeiros episódios da série, o protagonista Lucas Silva e Silva ganha como presente de aniversário um aparelho gravador. De memórias e de voz. A única coisa que interrompia o mundo da lua do qual eu fazia parte enquanto assistia o programa e acompanhava Lucas Silva e Silva voltando no tempo era o intervalo.
O intervalo era como uma pausa bruta no tempo do mundo da lua – no meu e no de Lucas Silva e Silva. Não queria pausar. Podia passar o dia inteiro naquele espaço. Trocava de canal, queria acelerar o tempo. Uma propaganda abrupta invadia a tela para dizer com voz pesada: não são as respostas que movem o mundo, são as perguntas.
Uma violência ao tempo, à experiência, ao pensamento, ao mundo da lua. Que de algum modo me fizeram buscar por essas outras coisas capazes de fazerem o tempo pausar, de desdobrá-lo, para poder retornar ao mundo do pensamento.
Quer dar uma pausa aí pra eu pensar?
Quando futebol e ciência humana se encontram, tudo parece partir de uma violência ao pensamento que, em nosso fazer pesquisa, reverbera na seguinte pergunta:
O que é o futebol pra você?
É assim que o trabalho começa, a partir de uma questão feita a oito jogadores da categoria sub-21 do Figueirense1, com a intenção de respondê-la no decorrer do processo de fazer um filme – que é sobre e com esses jovens que agora, além de atletas, são também cineastas.
A resposta é o que menos interessa. Nossa vontade de saber mora na tensão que se cria com aquilo que chega em formato de ponto de interrogação. Como pesquisadores, com as palavras sabemos dizer melhor, por isso perguntamos. Um desejo de saber dizer melhor daquilo que só alcançamos por meio das palavras, porque nos falta a experiência do corpo. E assim seguimos, questionando o que é possível questionar. E sempre há o que questionar. Vivemos neste espaço-tempo buscando conceituar e descrever aquilo que experimentamos observando. Nossa experiência é guiada pelas visibilidades, por aquilo que se repete, mesmo que percorramos diferentes campos de futebol. Talvez more aí a urgente necessidade de perguntar:
O que é o futebol pra você?
Está posta a tentativa de acessar isso que é do outro que faz desejar uma vida-futebol, que mesmo com resposta pronta não parece configurar uma resposta particular de experiência, dizendo de um todo e não só de um. Essa vida que é inteira futebol, que é também de um, mas é primeiramente de um todo, que faz responder à questão com afirmações, como: “é tudo”, “minha vida”, “amor”, “sem o futebol eu nada seria”. A resposta é o que menos nos interessa. Ainda assim, o que fazer com isso que é do outro, que chega em estado sólido de resposta? A nós, mãos que escrevem, que acompanham o futebol do lugar que nos cabe, como escreventes, nos resta continuar a perguntar. Até que seja possível chegar numa outra forma de fazer pensar sobre isso que parece ser respondido mais como um impulso corpóreo, como tantos outros que foram incorporados durante os anos de formação futebolística.
O futebol é minha vida.
Foi Léo Zonta quem disse isso. Um menino de 18 anos que é cobrado por não demonstrar ter garra em campo. Mas também foi Danyllo quem disse. Para quem o futebol é a vida, mesmo agora vivendo um momento difícil após ter sido dispensado do Figueirense e estar atuando na várzea. O futebol também é vida para Vini Nucci, que, com 21 anos, já viveu o sonho e se vê agora tendo que sonhar novamente. Ele atingiu o objetivo de assinar contrato profissional, mas se lesionou e, após retornar ao elenco principal, foi convidado a “descer” para a base mais uma vez.
O que é o futebol pra você?
- O futebol é minha vida!
Pesquisar futebol nos coloca diante de um eterno retorno a essa questão. E que, constantemente, nos devolve uma resposta que exprime tanto de vida, e que, ao mesmo tempo, parece não levar a saída alguma. Talvez porque não busquem saída, talvez porque o sonho os consuma tanto que não é possível enxergar muito além daquilo que é do movimento do corpo em campo. Cabe dizer: uma preocupação excessiva com isso que é o corpo ideal, para ser o próximo a ter a chance de ser escalado em um jogo do profissional. E que se traduz numa vida regrada e repetida entre: igreja, videogame, resenhas com os parças do futebol e da igreja, shopping com o empresário, videochamada com a família e consumo de coaching sobre “como dominar sua mente”.
A ideia de fazer um filme com jovens-jogadores, mostrando o que é o futebol que diz de uma vida, in-tensiona esse movimento de retorno nietzschiano. Colocar um ponto de interrogação naquilo que é ponto final no modo como tantos meninos concebem a vida de jogador de futebol, nos permitindo uma aproximação outra. Que mexe com outros sentidos que não só dos olhos e ouvidos, que se traduz naquilo que Léo Moura soube dizer melhor com palavras:
- Futebol pra mim? Ixi, não sei... Eu ia falar amor, mas não chega a ser amor, assim... Futebol pra mim é... Nossa, complicado. Quer dar uma pausa aí pra eu pensar? Nossa, mas pera aí, essa pergunta me pegou.
As perguntas que nos pegam... São sempre elas, as perguntas. O eterno retorno do pesquisador. Se eles têm shopping com empresário, nós as produções no Lattes. Se repetem em igreja e resenha com os parças, nós repetimos nossos pensadores preferidos nas nossas conversas com os parças também, os da academia. Se eles têm respostas, nós temos perguntas. Experiências estéticas similares, vivemos entre jogos de poder. Com um descaso em comum: a disposição de ser afetado.
Explicamos, a partir do conceito de partilha do sensível, de Jacques Rancière. A ideia diz de um comum que é partilhado, e como cada um toma parte deste comum, considerando sua experiência individual. “Assim, ter esta ou aquela ‘ocupação’ define competências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dotado de uma palavra comum etc.” (Rancière, 2009, p. 16). Ou seja, a partilha do sensível se refere às possibilidades de viver aquilo que é comum em determinado espaço, mas que é acessado de diferentes maneiras, dependendo da territorialização sociopolítica de cada indivíduo neste espaço que é comum. Pensar a vida enquanto espaço de pergunta, é para nós, pesquisadores das humanidades, um território comum, tal como é comum para os jovens-jogadores disporem seus corpos de maneira ordenada no campo. Mesmo que cada corpo seja diferente e seja de diferentes maneiras afetado, há ainda assim um comum na forma de pensar o espaço do corpo dentro de campo. O futebol é nosso ponto de encontro, de um jeito ou de outro. Mas como fazer esses comuns se encontrarem?
E o que é comum a nós, além do universo futebolístico? Não nos referimos agora à territorialização comum, mas aquilo que partilhamos como objeto que se deseja no contemporâneo. O desejo de fazer parte. O desejo de ser o melhor. O desejo de ser o primeiro. O desejo de ser único. O eterno retorno acaba sempre nos guiando até nós mesmos. Mas é a diferença na forma pela qual chegamos até isso que se repete, que produz aquilo que Schiller (citado por Rancière, 2009, p. 68) denomina de educação estética do homem. Uma experiência do sensível que assume outros formatos e, justamente por isso, produz afecções por meio de perguntas que nos pegam.
E o que é que nos pega? Ou melhor, como se deixar ser pego? Por que só algumas perguntas nos pegam e outras não? E como isso tudo desemboca na pergunta que continua a retornar: o que é o futebol pra você? E pra nós, o que é? Perguntas e respostas que parecem novamente nos guiar para um território comum, que não é o futebol e do qual tentamos escapar:
os afetos.
É na proposição 51 que Spinoza (2009, s. p.) diz:
“Homens diferentes podem ser afetados diferentemente por um só e mesmo objeto, e um só e mesmo homem pode, em momentos diferentes, ser afetado diferentemente por um só e mesmo objeto”.
A noção spinozana de afeto, somada à ideia de partilha do sensível, nos convida a pensar sobre aquilo que constitui nossa formação como pesquisadores e estudiosos do futebol. Percebemos uma tendência na formação de jogadores futebolistas que também se repete em nossa própria, na ciência. Um descolamento disso que é a experimentação do comum como um lugar do sensível. Da possibilidade de colocar o pensamento a pensar por meio de “atos estéticos como configurações da experiência” (Rancière, 2009, p. 11).
O movimento de deixar ser afetado. Pelas perguntas, pelas respostas, por uma cruzada de bola que parece ter sido retirada de um poema de Clarice Lispector, porque mexe com algum lugar do sensível que faz querer gritar do lado de gente que nem se conhece só pra poder dizer junto: você sentiu aquilo? E saber que o outro sentiu também, pois olhávamos todos para a mesma direção. Não do campo, mas dos afetos que o campo traz junto.
Futebol. Coisa que nos coloca tão perto disso que é o campo. Tanto do gramado, quanto do sensível. Que retoma ao questionamento: o que é o futebol pra você? E que faz perguntar outra pergunta: o que é a pergunta pra você?
No lugar da pesquisa, de encontro com o outro, a pergunta é o que nos aproxima e distancia. Perguntar errado, atropelado, sem pensar, ou pensá-la demais. Na pergunta parece morar um desconforto, que é de quem a faz e de quem a responde. Um anseio de ambos os lados de saber dizer, perguntando ou respondendo.
Tava impedido? Você viu aquele passe? Por que o Bernabé não tá jogando? Vamos assistir ao jogo pela CazéTv? O que esse cara tava pensando com essa escalação? Tem alguém que ainda espera algo do Neymar? Eles vão mesmo demitir o Diniz? Ninguém percebeu a situação em que aqueles meninos do Ninho moravam? O Cuca pensa sobre o que fez como a gente pensa no que ele fez? O Robinho sente alguma culpa? Por que a Marta ganha menos que o Neymar?
No campo do comum, pesquisadores e futebolistas se perguntam a mesma coisa. Mas o quanto isso tudo que é elemento discursivo nos aproxima de uma experiência do sensível na formação? Futebolística, humanística e da ciência. O quanto perguntar nos faz forçar o pensamento a pensar e produzir afecções no corpo?
É logo no início de O circuito dos afetos, de Vladimir Safatle (2015), que somos lembrados, com a figura de Kafka, da importância de inventar outros modos de dizer nos espaços institucionalizados. Inventar outra língua dentro dela própria. Inventar outros modos de ocupar o lugar que nos é comum: o campo. Mas, como nos lembra o próprio pensador:
“Se quisermos mudá-lo, será necessário começar por se perguntar como podemos ser afetados de outra forma” (p. 7)
Implicando ativamente em “forçar a produção de outros circuitos” (op. cit.) de afetos. Fazer falar com imagens. Repetir Léo Moura, que diz:
- Futebol pra mim? Ixi, não sei... Eu ia falar amor, mas não chega a ser amor assim... Futebol pra mim é... Nossa, complicado. Quer dar uma pausa aí pra eu pensar?
Uma pausa para pensar. Talvez essa seja a pretensão desse texto – e ele tem pretensão? –, das perguntas que fizemos, da repetição dos encontros com os parças da academia e da igreja. Um momento para poder dizer de novo e mais uma vez “ixi, não sei” e assumir esse lugar como um lugar do comum, porque, de algum modo, faz bambear a linha de pensamento e do gramado. Que deseja uma pausa pra poder pensar porque sentiu alguma coisa outra que fez experimentar o lugar do sensível. Que então leva a isso de se perguntar mais uma vez, quase que como um ritual antes de entrar em campo:
O que é o futebol pra você?
1 Este ensaio é parte da pesquisa de doutorado de Eduarda Moro, no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, sob orientação de Alexandre F. Vaz e coorientação de Antonio Jorge G. Soares. O trabalho de campo aconteceu entre os anos de 2022 e 2023 no Centro de Formação do Figueirense, com a categoria de base sub-21, durante a disputa da Copa SC Sub-21. A proposta da intervenção foi a de construir um filme que narrasse a vida de um jogador de futebol em formação. Os jogadores foram responsáveis pelas próprias filmagens, todas feitas com uma handycam antiga.
Referências
Rancière J. A partilha do Sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
Safatle, Vladimir. O circuito dos afetos. São Paulo: CosacNaify, 2015.
Spinoza, Baruch. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
SOBRE A AUTORA:
Eduarda Moro: Psicóloga, mestra em educação e doutoranda em ciências humanas (ufsc). Pesquisa o processo de subjetivação do jogador de futebol em formação. Interessa-se por temáticas vinculadas a arte, a imagem, estética e produção do sensível.
COMO CITAR:
MORO, Eduarda. As perguntas que nos pegam: o que é o futebol para você. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.14, 2024.
As perguntas que nos pegam: o que é o futebol para você. © 2024 by Eduarda Moro is licensed under CC BY-NC 4.0
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