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Ancelotti e os filhos de Deus

Carmen Rial (INCT Futebol/UFSC) e Lucas Cardoso da Silva (INCT Futebol/UFSC)

 

O texto abaixo traz uma reflexão sobre a religiosidade no futebol brasileiro contemporâneo, marcado pela presença da fé evangélica, o que pôde ser visto na recente convocação da Seleção Brasileira.


A religiosidade presente nas postagens de jogadores convocados para a Seleção Brasileira. Imagem: Instagram/Fabrício Bruno
A religiosidade presente nas postagens de jogadores convocados para a Seleção Brasileira. Imagem: Instagram/Fabrício Bruno

Que a religião é parte integrante do mundo do futebol, não há novidade nisso. A novidade desse século é a predominância de evangélicos entre os futebolistas brasileiros, que antes se dividiam entre católicos, seguidores de religiões afro-brasileiras ou evangélicos. Como tenho mostrado há anos (Rial, 2012), as manifestações religiosas públicas por meio de mídia de grande alcance no futebol brasileiro têm uma história mais recente: iniciam-se (e me corrijam se vocês têm uma lembrança mais antiga) quando Jairzinho ajoelhou-se agradecendo a Deus por um gol na Copa do Mundo de 1970. Sendo essa a primeira Copa transmitida ao vivo no país, e essa a primeira celebração que demonstrava fé, temos aí a origem do que se tornou um tópos repetido em comemorações de gols, ou em posts diversos nas redes sociais.

 

A presença da religião entre os futebolistas, porém, antecede o gesto público de Jairzinho – como mostra, por exemplo, a estátua de Nossa Senhora Aparecida encontrada no armário de Pelé, que permaneceu fechado por mais de cinquenta anos nos vestiários do Santos e foi aberto por ocasião de sua morte. O catolicismo era, e continua sendo, a religião oficial dos clubes, alguns dos quais mantêm capelas em seus estádios – e não apenas no Brasil, visitei uma no Camp Nou e outra no velho estádio Metropolitano na Espanha. E as práticas do candomblé, embora silenciosas, persistem – como pude constatar ouvindo o programa Sala de Redação da Rádio Gaúcha, no qual os jornalistas presentes relataram em detalhes a história do Pai Danilo, acionado pelo Internacional e pelo Grêmio, em busca de proteção[1].

 

A recente chamada de Ancelotti para os últimos jogos da seleção nas eliminatórias mais uma vez transformou-se em palco para os convocados demonstrarem sua fé. Alguns, como Alexsandro Ribeiro (Lille), foram discretos e postaram nas redes sociais apenas figurinhas (emojis).

 

Andrey Santos (Chelsea) foi direto: “Glória a Deus por mais uma convocação”. Caio Henrique (AS Monaco) escreveu: “Deus é bom o tempo todo, todo tempo Deus é bom. Que sentimento poder voltar a representar meu país!”. E Fabrício (Cruzeiro)[2]: “Toda honra e glória a Deus, que conduz meus passos. [...] Vamos juntos, sempre com fé!”. Já Kaio Jorge (Cruzeiro) postou: “Deus é Fiel” e: “[...] nunca estive sozinho: Deus e minha família sempre me sustentaram e me fortaleceram. Olho para trás com gratidão e sigo em frente com fé, foco e dedicação, certo de que o melhor ainda está por vir.”

 

Outros preferiram incluir citações de passagens bíblicas nos agradecimentos. Foi o caso de Douglas Santos (Zenit): “Estou muito feliz com essa convocação, e sempre será um prazer servir à Seleção Brasileira. Só tenho a agradecer a Deus por essa oportunidade!! ‘Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.’ Mateus 6:33”. Ou Hugo (Corinthians), que foi mais prolixo, escrevendo: “E todos hão de ver o quão grande é o meu Deus. Gratidão a Deus[3], a minha família, minha namorada, meus amigos, ao Corinthians[4], a Fiel torcida, e a todos que fazem parte desse momento especial na minha vida!!! Convocado pra seleção brasileira, glória a Deus. Pátria amada Brasiiilll”, também: “Honra e glória sempre a quem é digno, Jesus você é o motivo de tudo, te amo!! E todos hão de ver quão grande é o meu Deus[5] Gratidão por mais uma convocação, o sonho continua.”[6] e, ainda: “Jesus é o motivo!!”[7] Além das citações de passagens bíblicas, podemos notar, em publicações de jogadores como Lucas Paquetá (West Ham), tatuagens características de cunho religioso: “Deus preparou tudo” (em seu pescoço) ou, até mesmo, frases escritas nos equipamentos, como na luva de Hugo Souza (Corinthians) “Deus é fiel”[8].

 

O crescimento dos evangélicos no mundo do futebol brasileiro corresponde ao que aconteceu no país e constitui um dos fenômenos religiosos mais marcantes das últimas décadas. Em 1980, os evangélicos eram cerca de 6,6% da população brasileira; em 2000, somavam 15,4%; chegando a 22,2% em 2010, segundo dados do IBGE. E continuam crescendo: estimativas do Datafolha (2020) apontam que aproximadamente um terço da população brasileira já se identifica como evangélica, o que corresponderia a cerca de 65 milhões de pessoas. Mas a velocidade do seu crescimento está diminuindo, o que indica que talvez estejam próximos de atingir o seu teto, ainda que outras previsões indiquem que superarão os católicos em 2030. A adesão ao neopentecostalismo por parte dos jogadores, conforme me disseram os que contatei, ocorre frequentemente pela influência de laços familiares ou de pares futebolistas.

 

A “fé” dos futebolistas lhes proporciona benefícios. Ela estabelece fronteiras morais entre o “bem” e o “mal” e age no sentido de afastar os adeptos das “tentações” associadas a estilos de vida considerados nocivos às suas trajetórias profissionais. Assim, a religião estrutura o cotidiano por meio de uma cosmologia que orienta condutas, delimitando o que é permitido e o que deve ser evitado, ao mesmo tempo em que fomenta a autodisciplina diária e o monitoramento constante do corpo e das emoções. Entre os efeitos dessa ética religiosa, destacam-se a obediência, a disciplina pessoal, o autocontrole, a autoconsciência e a reflexão crítica, atributos dos quais os fiéis se tornam beneficiários. Além disso, a religião oferece narrativas e rituais que inserem os indivíduos em uma visão de mundo compartilhada – aquilo que Geertz (1973) designa como “cosmologia” – substituindo referenciais anteriores. Trata-se menos de uma explicação científica ou racional do que de um quadro simbólico de orientação das práticas sociais. Ao mesmo tempo, o pertencimento religioso promove transformações significativas, abrindo espaço para novas experiências e oferecendo uma leitura alternativa do mundo que reconfigura de modo profundo a existência e práticas (Asad, 1993) dos indivíduos.[9]

 

Uma coisa é certa: se Ancelotti continuar deixando de fora de sua lista Paulinho (Palmeiras) e suas comemorações de gols homenageando Oxóssi, os posts bíblicos e as celebrações de joelhos e com sinais da cruz continuarão prevalecendo. Mas não esperem o mesmo da parte do treinador da seleção. Apesar de ser um católico formado por salesianos, devoto de Dom Bosco e do Padre Pio, Ancelotti já declarou:

 

“Nunca rezo pelo futebol. Deus tem coisas melhores e mais importantes para fazer. O nosso é um jogo, e depende de nós; se treinamos bem, tudo andará como previsto. Deixemos que Deus se ocupe de outras coisas. Eu creio Nele e rezo todos os dias, mas para as coisas ao meu redor, não para o futebol”. (Ancelotti, 2014).

 

Referências

 

ANCELOTTI, Carlo. Carlo Ancelotti, metódico e católico: “nunca rezo pelo futebol”. Aleteia, 3 de jul. 2014. Disponível em: https://pt.aleteia.org/2014/07/03/carlo-ancelotti-metodico-e-catolico-nunca-rezo-pelo-futebol/. Acesso em: 26 de ago. 2025.

 

ASAD, Talal. Genealogies of Religion: Discipline and Reasons of Power in Christianity and Islam. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1993.

 

DATAFOLHA. Católicos representam 50% dos brasileiros; 31% são evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. Folha de S.Paulo, 13 de jan. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/catolicos-sao-50-dos-brasileiros-evangelicos-31-e-10-dizem-nao-ter-religiao.shtml. Acesso em: 16 de ago. 2025.

 

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins. Fontes, 1996.

 

GEERTZ, Clifford. The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books, 1973.

 

RIAL, Carmen. Banal Religiosity: Brazilian Athletes as New Missionaries of the Neo-Pentecostal Diaspora. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 9, n. 2, 2012, p. 128-159.

 

Sobre a autora e o autor

 

Carmen Rial é professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em que atua no Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. É coordenadora-geral do INCT Futebol e do Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC).

 

Lucas Cardoso da Silva é de Santa Catarina, natural de Tijucas e reside em Florianópolis.

Graduando em Ciências Socias, na Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista de iniciação científica do INCT Futebol e vinculado ao Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC).

 

Outras relações não hegemônicas entre o futebol e o sagrado fazem-se presentes no futebol de indígenas. Veja no nosso texto: Cosmologia e cultura na Liga de futebol Mbya Guarani – SC.


[1] Pedro Ernesto Denardin, César Cidade Dias, Leonardo Oliveira, José Alberto Andrade, Cristiano Munari, Luciano Potter e Adroaldo Guerra Filho, programa do dia 18 de março de 2025. “O Renato [treinador do Grêmio] depois da conquista, foi da Copa do Brasil, ele fez aqueles dois jogos contra o Atlético utilizando uma camisa verde, não sei se vocês lembram? Aquela camisa foi doada pelo pai Danilo. [...] O Renato pagou ele em 2016 e 2017”. Também: “O Inter quis tanto esse Gauchão, tanto, que juntou o presidente que não se fala, trouxeram o D'Alessandro já no ano passado, e o D’Alessandro enlouqueceu o vestiário, e pagaram o pai Danilo”. Um diretor do Inter, atendendo pedido do fisicultor Paulo Paixão, foi quem contatou o Pai Danilo para perguntar sobre a questão da dívida. “Segundo ele, era de 35 mil reais e 10 mil para o material (pipoca, porque a pipoca tem um efeito, e balas de mel, 5 mil balas de mel.” O Inter pagou e ganhou o campeonato gaúcho, depois de 7 anos sem título.


[2] O post completo estende os agradecimentos a outros protagonistas de sua vida: “Toda honra e glória a Deus, que conduz meus passos. Essa conquista é também da minha família, que está sempre ao meu lado, me apoiando em cada desafio. No @cruzeiro, encontrei a força do grupo, o trabalho sério dos meus companheiros, a confiança do nosso presidente e do nosso técnico. Orgulho imenso de representar o clube e agora novamente o meu país. Vamos juntos, sempre com fé!”.


[3] Em letras maiúsculas, no original.


[4] “Corinthians” em maiúsculas, no original.


[5] Tudo em maiúsculas, no original.


[6] “O SONHO CONTINUA!!!”, no original.


[7] “JESUS É O MOTIVO!!”, no original.


[8] Tudo em maiúsculas, no original.


[9] A religiosidade dos jogadores pode ser entendida como um “fato social”, que ultrapassa a dimensão individual para estruturar formas coletivas de conduta e pertencimento (Durkheim, 1996).



Como citar

RIAL, Carmen; SILVA, Lucas Cardoso da. Ancelotti e os filhos de Deus. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.30, 2025.


 
 
 

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