Sibelle Barbosa da Silva
No Brasil, a prática do futebol, além de ser uma atividade esportiva, suscita inúmeros fenômenos socioculturais. Nesse movimento, os clubes, ao acumular objetos, criam salas de troféus, memoriais e museus reforçando, nesses espaços, o sentimento de pertencimento clubístico dos sujeitos com suas agremiações (Damo, 1998; Silva, 2023). Entretanto, os artefatos destacados nas exposições pertencem, quase que exclusivamente, aos ídolos do futebol masculino e aos dirigentes homens, além das homenagens destinadas ao clube exaltando as conquistas da prática desse esporte.
Nessa perspectiva, essa opção de apresentação das narrativas expográficas desses museus deixa de contemplar temas mais diversificados e contemporâneos que poderiam ser expostos junto aos públicos, tais como conteúdos e debates sobre racismo, estudos de gênero e gentrificação. Nesse sentido, destaca-se a experiência museológica do Museu do Grêmio Hermínio Bittencourt, localizado em Porto Alegre (RS), ao formar uma coleção específica de futebol feminino, constatando a ausência de objetos que abordem as memórias das mulheres nas exposições do espaço como sujeitos ativos no clube. Destaca-se, nessa coleção, a doação da camiseta da pioneira Marianita Nascimento, realizada em 2022, e a sua entrevista concedida ao Museu do Grêmio em 2021.
Devemos destacar que o público do Museu do Grêmio, espaço oficialmente criado em 1984, ao entrar em contato com a história do futebol de mulheres no Brasil e no Grêmio, desconhecia que o futebol de campo, assim como vários esportes, foi proibido para as mulheres a partir do decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941 (Brasil, 1941), promulgado pelo presidente da República da época, Getúlio Vargas. A revogação dessa obrigação ocorreu somente em 1979, e, ainda assim, as mulheres ainda não podiam se profissionalizar na área. Somente após muita luta das mulheres futebolistas de todas as regiões do Brasil, elas conquistaram a regulamentação definitiva da prática em 1983 (Silva, 2015; Bonfim, 2019; Haag, 2023).
Nesse contexto, podemos observar os diversos obstáculos que as mulheres enfrentaram pelo direito de praticarem esportes, sobretudo o futebol. Todavia, é evidente que esses impedimentos se refletiram não apenas na prática, mas também na representação simbólica de suas participações em competições e conquistas. Reativar essas histórias e memórias, por meio dos museus, é um ato de conferir visibilidade e reparação histórica em relação à atuação dessas mulheres no futebol. Nessa perspectiva, Bruno Soares (2020, p. 10) nos faz uma provocação: “é portanto, preciso re-pensar o pensamento: este que nos chega como um instrumento de exclusão material e simbólica dos corpos que não podem ser pensados – isso porque, ao longo dos últimos séculos, alguns corpos não foram entendidos como corpos que pensam”. A partir dessa reflexão do pesquisador, podemos refletir que as mulheres que praticaram futebol foram deliberadamente apagadas da história com a finalidade de descredenciar esse passado e tornar ele inexistente. Esse imaginário foi tão bem produzido que, apenas recentemente, através de ações de pesquisa museológica, passou a haver uma redescoberta desse passado pelos museus, tornado presente os vestígios que resistiram ao tempo, tendo, na maioria das vezes, se transformado em coleções particulares das próprias ex-atletas. Já outros objetos, como os troféus, estão depositados nos clubes que elas representaram.
Temos, como exemplo pioneiro, o Museu do Futebol, localizado no estádio Pacaembu em São Paulo, que, a partir de 2015, inaugurou a exposição “Visibilidade para o Futebol Feminino”, concebida através de uma curadoria compartilhada com inúmeras pesquisadoras, atletas e colaboradoras do espaço. Entre outros exemplos, podemos destacar os museus de clubes como o Museu do Sport Club Internacional (2017), de Porto Alegre, com a exposição “A conquista do Campo” e o Memorial do Sport Club Corinthians Paulista (2018), de São Paulo, com a inauguração da mostra “Respeita as Mina”.
É nesse cenário de ressignificações que o Museu do Grêmio, a partir de 2017, com a oportunidade da reativação do Departamento de Futebol Feminino, iniciou as suas pesquisas. Dessa maneira, foi criado o projeto “Narrando Histórias” (2017), que tem o objetivo de reunir depoimentos de pessoas que participaram ativamente da construção clubística, através da metodologia da História Oral. Assim sendo, foram realizadas entrevistas com atletas e ex-atletas do futebol de mulheres do Grêmio. O passo seguinte foi o de mapear e organizar os objetos que se julgava inexistentes no depósito do Museu. Essa iniciativa resultou, em 2018, mesmo diante de algumas dificuldades internas, na entrada do primeiro troféu de futebol feminino na exposição de longa duração ao lado dos troféus que representam os homens.
Portanto, a pesquisa museológica foi fundamental para estabelecer uma metodologia de busca e análise das fontes, como os jornais, revistas, relatos orais e objetos. E foi a partir desses documentos que foi possível entender que a história do futebol de mulheres no Grêmio era mais antiga do que se esperava. E foi com a interlocução e auxílio da primeira capitã e fundadora do primeiro time de mulheres do Grêmio, a ex-atleta Marianita Nascimento (1980), a partir de maio de 2021, que foi possível compreender não só aspectos de sua biografia, mas também como se iniciou a modalidade no clube: ela corrigiu nomes, posições das atletas que saíram incorretas nas matérias jornalísticas, dificuldades, desafios, os presidentes da agremiação que as apoiaram para que as integrantes da equipe pudessem treinar. Ela destacou o nome de um vereador de Porto Alegre que lhe ajudou nesse processo político pela regulamentação da profissão pela Câmara de Vereadores: Valdir Fraga. Vale relembrar que, na época em que Marianita atuava, nos fins dos anos de 1970, a modalidade não era oficialmente reconhecida no Brasil, e, como as jogadoras não tinham direitos trabalhistas ou acesso a competições oficiais, ela foi uma das vozes que se levantou em defesa da regulamentação da modalidade, lutando por melhores condições para as atletas de sua equipe e, consequentemente, também do Brasil. De acordo com as fontes de jornais, foi o anteprojeto produzido no Rio Grande do Sul que serviu como base para a regulamentação estabelecida pelo Conselho Nacional de Desportos (CND). Portanto, devido aos esforços de Marianita e inúmeras outras atletas de todas as regiões do Brasil, o futebol de mulheres no país foi finalmente regulamentado em 1983, permitindo que jogadoras fossem registradas e pudessem participar de competições oficiais.
Por fim, essas ações resultaram na doação de sua camiseta ao museu em 2022 após a cerimônia do Conselho Deliberativo do Clube convidar a pioneira para ser a primeira mulher a discursar em uma solenidade de abertura das comemorações de aniversário da agremiação, ato muito simbólico que aconteceu para a história recente do Grêmio. Logo, a peça entrou em exposição se tornando um objeto diálogo (Bruno, 1997), a partir do qual foi possível estabelecer, mediado pelo artefato, discussões com os públicos visitantes sobre a proibição e luta ainda no presente das mulheres pelo direito de se tornarem atletas profissionais.
Atualmente, o espaço expositivo apresenta cinco peças disponibilizadas na vitrine mais importante da exposição de longa duração, chamando a atenção dos públicos do clube. Ao trazer esse debate para o espaço, essa atitude tem ultrapassado o edifício do Museu e está movendo ações internas representativas como o reconhecimento que o clube tem dado gradativamente às atletas pioneiras, especialmente para a primeira capitã e fundadora do primeiro time de mulheres do Grêmio (1980) Marianita da Silva Nascimento. Com seu retorno ao cotidiano da agremiação, a ex-atleta vem conquistando cada vez mais espaço, sendo chamada para campanhas de combate ao racismo, pois ela é uma mulher negra e símbolo de resistência quando o futebol para as mulheres nem era permitido. Nesse sentido, Marianita tem se estabelecido, perante as atletas mais jovens, como uma personagem inspiradora e de liderança. Tanto que, em 2023, Marianita assumiu, ao lado de Karina Balestra, a maior artilheira do clube, a direção do Departamento de Futebol Feminino, algo inédito na história do Grêmio, pois são duas mulheres liderando o setor.
Nesse sentido, a pesquisa no museu foi ampliada, dando origem a um eixo de pesquisa denominado “Mulheres no Grêmio” (2022) subdividido em três linhas de investigação: atletas, gestoras e torcedoras. Recentemente, foi adicionada a linha “funcionárias”, para contemplar as memórias de inúmeras colaboradoras que narram a sua participação na construção administrativa do clube, e também a linha “pesquisadoras”, pois a utilização das fontes do museu, que estão em constante atualização, são usufruídas sobretudo pelas pesquisadoras mulheres, e é essa ação que garante o compartilhamento e reconhecimento da presença dessas histórias e memórias não só no Grêmio, mas soma para a visibilidade desses vestígios em todas as regiões do Brasil.
Referências
BONFIM, Aira. Football feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). Dissertação de Mestrado – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. Rio de Janeiro, 2019. 217 p.
BRASIL. Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941. Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-3199-14-abril-1941-413238-publicacaooriginal-1-pe.html>. Acesso em: abr. 2024.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. Museus de empresa: princípios, problemas e perspectivas. In: Cadernos de Sociomuseologia, n. 10. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 1997. p. 43-46.
DAMO, Arlei Sander. Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense e seus torcedores. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1998. Disponível em: <https://www.ludopedio.com.br/biblioteca/para-o-que-der-e-vier/>. Acesso em: ago. 2020. 240 p.
HAAG, Fernanda Ribeiro. O futebol não foi profissional comigo, mas eu fui com ele: o futebol como trabalho para as mulheres no Brasil (1983-2023). Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História. São Paulo, 2023. 356 p.
SILVA, Giovana Capucim e. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1965-1983). Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2015. 135 p.
SILVA, Sibelle Barbosa. A presença do futebol de mulheres no Museu do Grêmio – Hermínio Bittencourt: a musealização de uma coleção. Dissertação (Mestrado), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, 2023. 162 p.
SOARES, Bruno Brulon. Descolonizar o pensamento museológico: reintegrando a matéria para re-pensar os museus. In: Anais do Museu Paulista, São Paulo, Nova Série, v. 28, 2020, p. 1-30.
Sibelle Barbosa da Silva é mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e museóloga do Museu do Grêmio Hermínio Bittencourt.
Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pela autora no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto, em Florianópolis.
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Criador: Jefferson Bernardes | Crédito: Jefferson Bernardes/Preview.com
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