Torcidas no estádio: deleites, seduções, violências
- INCT Futebol
- há 4 dias
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Alexandre Fernandez Vaz (UFSC)
No texto a seguir, o autor reflete sobre as emoções evocadas pelas torcidas nos estádios de futebol, e sobre as visões da mídia e da academia sobre elas.

A frequência a estádios mostra um jogo de futebol que é muito diferente daquele visto na televisão. Enquanto os futebolistas se movimentam em coreografias e equívocos que ficam ausentes na telinha, a bola (alvo permanente das câmeras principais da partida) está, pelo efeito de aproximação das tantas lentes disponíveis para a filmagem, quase sempre enquadrada e muitas vezes próxima de nossa visão, o que seria impossível se estivéssemos no local do acontecimento. Isso ocorre mesmo que não nos desloquemos um mísero metro da poltrona da sala, da mesa do bar ou do telefone celular. Ir a campo, portanto, é uma experiência singular para o olhar, em sua captura e interação com o que acontece frente a cada espectador.
A visão, no entanto, não é o único sentido desafiado pelo desfrute que o espetáculo futebolístico proporciona. Sentar na arquibancada – e frequentemente dela se levantar – supõe sons, cheiros, toques e mesmo sabores muito próprios, fazendo com o que cada pessoa componha, a seu modo, a experiência coletiva que, de certa forma, configura o que Walter Benjamin (2013) chamou de recepção tátil, o mergulho profundo em um ambiente que afeta os sentidos humanos, colocando o sujeito em uma relação muito particular com o ambiente. Se quisermos pensar em outro registro, igualmente interessante mas algo perturbador, as massas no estádio ajudam a construir a utopia da obra de arte total, aquela proposta por Richard Wagner, cujo desiderato esportivo foi encontrado nas pretensões arquitetônicas e ritualísticas dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936 (Alkemeyer, 1996).
O esporte não é o mesmo na ausência de espectadores e torcedores. Como se não bastasse nossa própria vivência para saber disso, os meses de pandemia de Covid-19 deixaram tudo ainda mais claro. Não é casual, portanto, que as transmissões televisivas eventualmente coloquem sons de torcida como fundo dos eventos, sugerindo a construção de uma atmosfera que fora dos estádios poderá ser ao menos imaginada. A coisa chega a tal ponto que na Argentina – um país muito, muito apaixonado pelo futebol –, quando uma emissora não tem os direitos de exibição de imagens durante a transmissão de uma partida, mostra-se as torcidas durante praticamente todo o seu desenrolar, ao contrário daqui, em que, com frequência, em canais de YouTube, aparecem na tela narradores e comentaristas.
Os torcedores, portanto, fazem parte do evento, não apenas por sua presença ao redor do campo de jogo, mas pela maneira como se comportam. Equipes com grande número de aficionados, como o Corinthians Paulista, costumam reunir algo em torno de 40 mil pessoas em todas as suas contendas, mesmo em noites que antecedem dias laborais. Nesses rituais em que muitos parecem entrar em transe, já são mais escassas as invasões ao campo, mas o estádio permanece como palco de situações incríveis. No ano passado, uma cabeça de porco foi arremessada no gramado, em partida contra o Palmeiras, cuja torcida, há poucas semanas, devolveu a afronta atirando cabeças de galinha. O suíno é o animal que simboliza a equipe da Pompeia, enquanto a referência à ave se deve ao fato de o gavião representar o clube da Zona Leste. Se, no primeiro caso, temos uma ressignificação de um símbolo antes pejorativo, no segundo, a ofensa se dá por um mecanismo misógino: a inferioridade dos corintianos estaria no fato de eles serem, de fato, fêmeas.
O ímpeto no interior do estádio é forte e certos grupos se destacam, seja por suas faixas afirmativas (Autistas da Fiel, por exemplo), bandeirões (como é o caso de Gaviões da Fiel, Camisa 12 e Coringão Chopp), coreografias ou cânticos, no mais das vezes entoados sem pausa durante o jogo. Ver uma torcida organizada em ação é algo espetacular e que chega a emocionar. Ao menos parte delas representa o que costumamos chamar de movimento social, aquelas entidades da sociedade civil que atuam coletivamente em torno de um conjunto de identificações. Reivindicam, com isso, reconhecimento social, aglutinando pessoas e vivendo uma vida que vai para além da devoção ao time. Gaviões da Fiel, Mancha Alviverde e Independente, respectivamente de Corinthians, Palmeiras e São Paulo, são igualmente grandes escolas de samba. Vários estudos acadêmicos têm sido feitos sobre o tema e com eles muito se aprende. Há que se considerar, portanto, ainda mais em um país como o Brasil, a importância política e comunitária dessas agremiações.
Outra face desse mesmo processo, no entanto, não é tão bonita nem tão nobre. No começo deste ano, foram vários os conflitos entre torcidas organizadas. No Recife, a catastrófica batalha entre adeptos do Santa Cruz e do Sport; em São Paulo, mesmo em partida com torcida única, corintianos e são-paulinos se digladiaram perto do Morumbi, estádio do Tricolor; em Florianópolis, no primeiro clássico do ano, partidários de Avaí e de Figueirense protagonizaram cenas lamentáveis nas cercanias da Ressacada, casa do primeiro. Sim, eram poucas pessoas, se compararmos com a massa de torcedores ou mesmo com a de filiados às organizadas, mas isso não vale como atenuante, já que o pequeno número representa instituições que apenas como exceção penalizam seus arruaceiros. O comportamento violento é algo não apenas aceito, mas valorizado, sinal de bravura e de sacrifício em favor do pertencimento e da fidelidade a sabe-se lá que fantasia.
Na ânsia de defender as organizadas, muitos de nossos pesquisadores preferem fechar os olhos frente ao evidente fato de que elas são depositárias e promotoras, também, de tremenda violência. Sim, o sensacionalismo de certa imprensa, assim como a inabilidade (para usar aqui uma palavra bastante acanhada) da Polícia Militar, estigmatizam e criminalizam os movimentos sociais, e os torcedores acabam também sendo vítimas disso. Mas, basta ir a um estádio para observar o tanto de chauvinismo, misoginia e homofobia que não são apenas expressão de indivíduos, mas de grupos que, não raro, entoam mantras que evocam a bestialização e o estupro (crime hediondo e arma de guerra das mais terríveis, empregada, aliás, por ocasião do clássico recifense).
Os coletivismos são sempre perigosos, e ainda vale o que Sigmund Freud (1993), há um século, escreveu sobre a dissolução subjetiva na massa, esse processo tão tentador quanto regressivo. Seria bom que as pesquisas acadêmicas olhassem para isso mais de perto, questionando a simpatia que muitos de nós temos em relação a certa criminalidade. “Seja marginal, seja herói”, escreveu Hélio Oiticica há cinco décadas. O elogio do que está à margem, do que é esquecido e calado, não é o mesmo que defender o êxtase da violência, tampouco se deixar cair na sedução da precariedade. Mais deleite estético e menos elogio à identificação com o agressor, por favor.
i Licença: CC BY-SA 4.0. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Final_Paulist%C3%A3o_2017.jpg. Acesso em: 19 de mai. 2025.
Referências
ALKEMEYER, Thomas. Körper, Kult und Politik: von der “Muskelreligion” Pierre de Coubertins zur Inszenierung von Macht in den Olympischen Spielen von 1936. Frankfurt: Campus, 1996. 554 p.
BENJAMIN, Walter. Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit. Organização de Burkhardt Lindner. Stuttgart: Reclam, 2013. 117 p.
FREUD, Sigmund. Massenpsychologie und Ich-Analyse. Frankfurt am Main: Fischer, 1993. 168 p.
Sobre o autor
Alexandre Fernandez Vaz é Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq).
Como citar: VAZ, Alexandre Fernandez. Torcidas no estádio: deleites, seduções, violências. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.15, 2025.
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