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A polêmica da camisa vermelha da seleção brasileira: futebol e ideologia em estado puro

Daniel Machado da Conceição (UFSC/INCT Futebol)

Beatriz de França Alves (UFS)

Cristiano Mezzaroba (UFS/INCT Futebol)


No texto a seguir, os autores e a autora comentam os polêmicos boatos sobre a camisa vermelha da seleção de futebol masculino, refletindo sobre seus significados.


A polêmica camisa vermelha da seleção (imagem ilustrativa criada com DALL-E)
A polêmica camisa vermelha da seleção (imagem ilustrativa criada com DALL-E)

Acompanhar postagens e memes que recebemos cotidianamente por meio de sites ou redes sociais nos coloca em contato com um intenso e exponencial universo discursivo que expõe as múltiplas, difusas e diferentes vozes da sociedade contemporânea. Quando o assunto é o futebol, então, temos uma exacerbação das paixões e dos afetos. Isso porque, nesse caso, está envolvida a dimensão das relações clubísticas, hoje em dia muito mais intensas se comparadas com a que a torcida brasileira teve (e tem) com a seleção brasileira de futebol masculino.


Aqui, abrimos um parêntese mais que necessário: as transformações dos tempos nos fazem usar a complementação “masculino” para especificarmos a qual futebol estamos nos referindo na frase acima. Isso revela a necessidade de separar o que consideramos quanto às seleções brasileiras de futebol: a masculina, cada vez mais perdendo relevância e interesse, e a feminina, cada vez mais gerando atenção e mobilizando novos afetos para quem outrora não sabia da existência e da qualidade do futebol feminino brasileiro. Fechamos nosso parêntese e seguimos com a discussão pretendida: refletir sobre a atual polêmica, no Brasil, quanto às possíveis novas cores do uniforme da seleção brasileira.


Desde nossos tempos de escola, somos ensinados sobre o significado das cores da bandeira brasileira, seja nas aulas de Educação Moral e Cívica (EMOCI) ou Organização Social e Política Brasileira (OSPB) – inserções curriculares decorrentes das ideias militares nos espaços educativos – ou em qualquer outro componente curricular. É comum aprendermos que a cor verde corresponde às grandes extensões territoriais de matas 1, que o losango na cor amarela representa as riquezas naturais 2, o círculo azul representa o céu do Rio de Janeiro no momento da Proclamação da República, e o branco – na faixa em que temos o lema positivista “Ordem e Progresso” – representa a paz e a união entre os estados brasileiros.


É sempre de bom-tom desconfiar do senso comum: nossa bandeira não tem essas cores por essa simbologia tão óbvia. Vamos aproveitar, então, a polêmica envolvendo a cor vermelha no nosso uniforme da seleção de futebol para discutir sobre nossas cores e suas simbologias. Assim, em meio a mais uma polêmica, fruto de questões ideológicas bastante intensas no Brasil atual, podemos fazer disso algo pedagógico: aprender sobre nossos símbolos, nossa história e nosso momento atual!


Diferentemente do que aprendemos, as cores da bandeira brasileira são referências à monarquia e às poderosas famílias dos primeiros governantes brasileiros, e não a questões relacionadas à natureza ou às nossas riquezas naturais. Numa rápida pesquisa na internet 3, aprendemos que a versão oficial da bandeira foi adotada em 15 de novembro de 1889, após a chamada “Proclamação da República”. Nela, o verde representa a Dinastia Bragança (à qual Dom Pedro I pertencia) e o amarelo representa a Dinastia Habsburgo (da Imperatriz Leopoldina, esposa de Dom Pedro I). Lembremos, também, imersos no doentio universo ideológico que tomou conta e bestializou boa parte do Brasil, que o nome do nosso país se deve ao grande número de árvores denominadas “pau-brasil”, em que a palavra “brasil” (com “b” minúsculo) significa “vermelho como brasa”.


A seleção brasileira de futebol também foi vinculada aos símbolos nacionais com um entendimento quase certeiro. A Era Vargas e a Ditadura Militar souberam aproveitar essa representação para visibilizar as grandes vitórias e conquistas da seleção brasileira de futebol ao longo do século XX como sendo conquistas do Estado brasileiro. Os títulos mundiais e a exuberância da seleção de 1970 na Copa do Mundo, exibida em cores, eternizam a imagem do belo, da criatividade e de uma nação tropical soberana e conquistadora. A camisa amarela da seleção brasileira foi alçada ao patamar de símbolo nacional a partir da simbologia atribuída a ela. Embora essa marca tenha sido impulsionada por políticas governamentais, é a figura do atleta Pelé que foi se configurando como grande responsável por consolidá-la no mundo. 


A “amarelinha” chamou a atenção com grandes jogadores, de várias épocas, com seus lances magistrais: Garrincha, Pelé, Rivelino, Sócrates, Romário, Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho e tantos outros. Nós, brasileiros e brasileiras, e o mundo, acostumamo-nos a ver jogos da seleção e automaticamente temos como representação o verde-amarelo.


Entretanto, a extrema-direita tem se apropriado das cores e do uniforme da seleção brasileira 4, principalmente com a identificação dos símbolos nacionais cooptados pelo movimento político atualmente conhecido como “bolsonarismo”. Fruto das ideias nacionalistas, dos valores conservadores cristãos (?) e de um moralismo questionável, ele articula “Deus, Pátria e Família” como lema nacional. Desde então, algo estranho tem acontecido à seleção brasileira de futebol masculino. Sobre isso, sugerimos a leitura do interessante texto publicado aqui no Bate Pronto, A amarelinha é de quem? O “dessequestro” da camisa da seleção, de Marcelo Alves de Resende e Leda Maria da Costa.


Com o bolsonarismo e a retomada e intensificação de certos valores conservadores, houve uma reapropriação de uma versão da bandeira antiga, com a valorização da Monarquia e, respectivamente, dos valores coloniais impostos à sociedade 5


Nesse atual contexto, os motivos do baixo desempenho da seleção masculina podem ser azar, baixa competitividade ou, até mesmo, um nível futebolístico abaixo do de outras seleções, tanto sul-americanas quanto europeias, asiáticas e africanas. Inclusive, tudo isso implica na dificuldade em ter uma boa sequência de vitórias, que tem se mostrado nos dois últimos anos, a ponto de a classificação para a próxima Copa do Mundo (2026) estar sendo conquistada penosamente. Muito recentemente, em uma crônica, Tostão, outra grande figura histórica do futebol, adjetivou esse futebol como medíocre. 


A seleção brasileira masculina, com seu uniforme verde-amarelo, não joga bem, não consegue vitórias convincentes e, no momento de escrita deste artigo, estava na quarta posição nas Eliminatórias, empatada com 21 pontos com a seleção do Paraguai e com 1 ponto a mais que a seleção da Colômbia – sendo que somente as 6 primeiras classificam-se diretamente para a Copa de 2026, e a sétima colocada disputará uma repescagem. Certamente, conseguirá a classificação, mas de uma forma nunca pensada em relação às dificuldades encontradas desta vez.


Eis que, em abril de 2025, começam a surgir “burburinhos” em portais de notícias e nas redes sociais, supondo que a empresa Nike, patrocinadora oficial do material esportivo da seleção brasileira, estava procurando alternativas para as cores do uniforme da seleção. E, supostamente, “vazam” imagens de camisetas da seleção na cor vermelha. Trata-se, antes de tudo, de uma simples estratégia de marketing para vender mais camisas, como habitualmente os clubes de futebol realizam com novos uniformes temáticos, além de uma reação à queda nas vendas do uniforme número um da seleção, ou até mesmo de uma provocação para atender à polarização na política brasileira, que reverbera em diversas esferas do social. Independentemente dessas questões, o interesse da empresa é vender, estando pouco preocupada com o debate político ou a simbologia da camisa da seleção.


No entanto, uma guerra discursiva toma conta das redes sociais. Pessoas e políticos ligados à ideologia de direita/extrema-direita acham um absurdo e protocolam reclamações no Congresso Nacional contra a “nova cor” no uniforme da seleção. Jornalistas e narradores ficam indignados com essa possibilidade, alegando ser interferência do atual governo brasileiro, de centro-esquerda, vinculando o vermelho às cores do PT, partido do presidente Lula.


Impressiona que, apesar de a polêmica criada em torno da cor do uniforme da seleção causar tanta indignação e discussões acaloradas, não temos visto a preocupação e as discussões sobre o futebol ruim, relações comerciais e os graves problemas de corrupção da CBF, inclusive, recentemente divulgados pela Revista Piauí 6. Além do fato da constante troca de técnicos da seleção e a falta de sequência ou convicção na proposta de trabalho, a ponto de que, no momento da escrita destas reflexões, início de maio de 2025, a seleção brasileira de futebol masculino não possuía técnico. Fazendo uma analogia à maneira como um narrador esportivo faz as chamadas para as transmissões do Campeonato Brasileiro de futebol masculino, ao dizer que o futebol é o “puro suco do entretenimento”, poderíamos dizer em relação à polêmica da cor vermelha no uniforme da seleção brasileira de futebol: é o puro suco da ideologia de extrema-direita brasileira!


Sem assunto, os “futebólogos” que estão na imprensa, política e religião, assim como ex-atletas, dirigentes, torcedores(as), entre outros(as), movidos por paixões ideológicas, opinam nos mais diversos veículos de mídia e de comunicação, repercutindo nas redes sociais cada vez mais tóxicas e disseminadoras de desinformação. Ninguém questiona que o “manto sagrado do futebol brasileiro”, que supostamente representa a diversidade de uma nação, não é acessível ao povo. O valor de uma camisa oficial da seleção equivale, em média, a 30 ou 40% do valor do salário mínimo nacional. 


Para boa parte da população brasileira, a verdadeira questão é: compro alimentação para meus filhos, pago aluguel, adquiro um medicamento, conserto o automóvel, opto por momentos de lazer – indo ao teatro, ao cinema, ou mesmo adquiro livros – ou compro a camisa da seleção?


O mais estranho nesse contexto é ver tanta gente se mobilizando pela cor da camisa e esquecendo os outros problemas mais urgentes. Essa discussão escancara o quanto os símbolos nacionais foram apropriados por interesses ideológicos. Uma camisa que um dia representou para o mundo a cultura ampla e diversa de um povo multicultural, hoje virou campo de disputa política, representando somente um lado da população (diga-se, aqueles que podem comprar a camisa da seleção).

     

E isso mexe diretamente com a nossa identidade cultural, ainda mais quando um símbolo como a camisa da seleção brasileira deixa de representar e aglutinar toda uma nação, significando que perdeu sua força de unir as pessoas. Em vez de ser algo que aproxima, vira motivo de brigas e desentendimentos. É como a bandeira, o hino e o futebol, que antes eram símbolos de um povo, mas hoje parece ter um “dono” – alguém ou alguma composição político-partidária com poder de manipular uma massa de cidadãos. Ser brasileiro virou uma disputa e, nesse jogo, quem gritar mais nas redes ou na política ganha a partida. De um lado, a torcida veste a camisa verde e amarela, do outro, a vermelha. E, no meio disso tudo, a gente vai perdendo e fragmentando os sentidos que realmente nos unem e poderiam ser elementos imateriais (um sentido de pertencimento comum) com foco na transformação social. Incluindo a melhoria de todos os indicativos de um país que, apesar de ser a 10ª economia mundial, ocupa a 84ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano (dados divulgados no começo de maio de 2025).


Nas redes sociais, esse debate ficou em alta pois, de um lado, tem quem defenda a “nova” camisa vermelha, e de outro, tem quem veja nisso um absurdo. E no meio da tal polêmica, muita gente lembra que o que realmente importa é o futebol, é a seleção em campo, independentemente da cor que ela veste. Tem torcedor dizendo que, seja vermelha ou amarela, a camisa não muda o amor pela seleção e muito menos resolve ou piora os problemas da equipe e do país. E faz sentido: já tivemos camisas vermelhas na nossa história, e várias seleções pelo mundo usam cores que não estão necessariamente na bandeira, por exemplo, Itália e Alemanha. 


No fim das contas, talvez o problema não esteja na cor da camisa, mas na forma como deixamos os símbolos virarem ferramentas de separação, segregação e exclusão, quando poderiam cumprir seus propósitos de serem espaços de encontro. A futilidade do debate sobre a cor da camisa apenas afirma que o momento vivido no país está muito aquém das expectativas do povo. Para o torcedor, o que importa é o preço da camisa, do ingresso e o desempenho da equipe. A polêmica sobre a cor vermelha é apenas mais um exemplo da estupidez que parte dos brasileiros (e de muitas instituições) revela em relação às ideologias políticas.


1 O desmatamento, os incêndios propositais, o próprio desequilíbrio climático e as consequências aos grandes biomas, como Amazônia e Pantanal, mereceriam uma atualização a essa argumentação. 2 A mineração, a invasão dos territórios indígenas, a intoxicação dos povos originários, a poluição do solo e dos rios também merecem atualização. 3 Disponível em: https://www.politize.com.br/cores-da-bandeira-do-brasil/. Acesso em: 12 de mai. 2025. 4 Obviamente, aqui estamos fazendo uma afinidade forçada, apesar dos fatos serem verdadeiros. 5 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2022/09/07/simbolo-nacional-conheca-a-historia-da-bandeira-do-brasil.htm. Acesso em: 12 de mai. 2025. 6  Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/as-extravagancias-sem-fim-da-cbf/. Acesso em: 12 de mai. 2025.



Sobre os autores e a autora:


Daniel Machado da Conceição é doutor e mestre em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Ciências Sociais – Licenciatura e Bacharelado pela UFSC. Pesquisador associado ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC). Membro do INTC Futebol.


Beatriz de França Alves é graduada em Educação Física – Licenciatura pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade, Cultura e Educação Física (GEPESCEF).


Cristiano Mezzaroba é doutor em Educação (UFSC), mestre em Educação Física (UFSC) e licenciado em Educação Física e Ciências Sociais (UFSC). Professor do Departamento de Educação Física na Universidade Federal de Sergipe (UFS), onde atua também no Programa de Pós-Graduação em Educação (Linha “Tecnologias, Linguagens e Educação”). Coordenador da Linha “Mídias, Torcidas e Movimentos Antirracistas” do INCT Futebol.


O blog Bate-Pronto tem explorado relações entre o futebol e a política nos contextos brasileiro e latino-americano. Se você se interessa por esse tema, poderá gostar de ler o nosso texto: Do estádio às ruas: torcedores contra a violência do Estado na Argentina.


Como citar: CONCEIÇÃO, Daniel Machado da; ALVES, Beatriz de França; MEZZAROBA, Cristiano. A polêmica da camisa vermelha da seleção brasileira: futebol e ideologia em estado puro. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.14, 2025.




 
 
 

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