Bruna, presente!
- INCT Futebol
- há 9 horas
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Caroline Soares de Almeida
Editora do blog Bate-Pronto

Corote e Molotov: o lazer e a luta do povo de rua é o título do trabalho apresentado por Bruna Oliveira da Silva no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro: Produções e Epistemologias Futebolísticas e no IV Simpósio de Futebol do NAVI. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo, ela era graduada em Lazer e Turismo pela mesma instituição. Há poucos dias, no mês passado, Bruna foi brutalmente assassinada. Sua partida precoce e violenta representa uma perda irreparável para a pesquisa social brasileira, mas seu legado permanece vivo na força de seu compromisso com as lutas populares, os direitos humanos e os saberes construídos nas margens da sociedade.
Sua pesquisa parte da prática do futebol de várzea entre pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo, com foco na experiência do time amador “Corote e Molotov” e da comunidade “Maloca”, nome atribuído pelos próprios moradores ao local onde vivem no bairro da Mooca, em São Paulo. Acompanhando de perto a organização dos jogos, Bruna observou como essa coletividade cria redes de apoio, vínculos sociais e formas de resistência por meio do futebol. Utilizando entrevistas e observação participante, o estudo mostra como o esporte, quando vivenciado em experiências auto-organizadas, pode fortalecer laços comunitários e afirmar direitos básicos como moradia, dignidade e convivência.
A pesquisa destaca que, embora existam equipamentos de lazer na cidade, o acesso a esses espaços continua profundamente desigual. Entre precariedades e exclusões, o “Corote e Molotov” surge como uma iniciativa de vida coletiva, em que o lazer se entrelaça com a luta por justiça social. Bruna nos mostra que o futebol de várzea, nesse contexto, não é apenas prática esportiva: é encontro, solidariedade, construção de identidade e disputa por reconhecimento.
Ao registrar essas vivências, Bruna nos convida a refletir sobre o valor das iniciativas autogestionadas e sobre a urgência de escutar vidas marginalizadas, em situação de extrema vulnerabilidade social, sobre as alternativas que esses grupos podem criar fora das estruturas institucionais. Seu trabalho permanece como referência e testemunho de uma trajetória comprometida com transformações sociais construídas a partir do cotidiano, da escuta e da coletividade. Sua memória seguirá viva nos campos, nas ruas e nos espaços onde se luta por dignidade e por um outro modo de viver a cidade.
Como uma homenagem a Bruna e para difundir o trabalho realizado por ela, iremos apresentar, abaixo, uma adaptação para o blog Bate-Pronto do resumo do trabalho apresentado por ela no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro.
Bruna, presente!
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Corote e Molotov: o lazer e a luta do povo de rua
Bruna Oliveira da Silva (USP)
A inacessibilidade ao lazer de qualidade decorrente de diversas barreiras sociais, políticas e econômicas é uma realidade enfrentada por muitos, especialmente os menos privilegiados, mesmo sendo um direito garantido constitucionalmente.
Ao criar um ambiente de lazer, o futebol de várzea emerge como um exemplo significativo de organização e senso comunitário, refletindo aspectos sociais e culturais presentes nos bairros periféricos. Alcançando, também, os indivíduos em situação de rua daquelas regiões.
Atualmente, a dinâmica desse futebol ultrapassou as margens do rio Tietê (São Paulo) e conta com ferramentas facilitadoras de sua expansão, como a economia colaborativa e as redes sociais. Apesar de não haver um levantamento quantitativo preciso, é possível observar o crescimento expressivo de times na grande metrópole.
A pesquisa aqui apresentada volta-se para o time “Corote e Molotov”, fundado em 2016, no bairro da Mooca, na cidade de São Paulo. O estudo visa analisar a dinâmica dos jogos realizados pelo time, explorando como as atividades auto-organizadas contribuem para o grupo e seus membros, além de examinar a relação do grupo com a cidade.
Uma abordagem etnográfica é proposta para compreender melhor o pensamento dos participantes acerca da importância do time para a comunidade. Documentar essas narrativas é crucial para preservar essa expressão cultural.
O futebol de várzea é uma atividade muito expressiva, em que o lazer é amplamente trabalhado, por se tratar de algo organizado pela comunidade. Apesar do tom de “brincadeira” atribuído ao amadorismo, é possível notar traços culturais locais, representatividade e sentimento de pertencimento. Ele está imerso em uma história, em contato com pessoas que, junto com sua identidade, gírias e costumes, organizam os jogos sem influência das grandes corporações, com o único propósito de criar um cenário lúdico.
Através do futebol de várzea, a população expressa sentimentos, mobilizando não só os jogadores, mas também quem participa desse contexto, quem reside próximo, quem simpatiza com as questões políticas do bairro, oferecendo solidariedade nas relações sociais e com o espaço.
Para os brasileiros, o futebol é referencial de lazer. A partida se torna deleite para jogadores, familiares, amigos e torcedores. O futebol de várzea tornou-se símbolo de lazer das classes populares, pois esse contato difundiu a modalidade, promovendo a participação dos sujeitos.
É nesse contexto que o time “Corote e Molotov” surge, em uma tentativa de garantir não só o lazer de qualidade a uma população preterida, mas o acolhimento dos sujeitos que compõem essa população. Logo na entrada do local em que os integrantes do time se reúnem, há um cartaz que chama a atenção para quem ocupa aquele local: a população em situação de rua e ex-trabalhadores da Alcântara Machado1.
O cartaz deixa claro que aquele é um espaço de uso e manutenção coletiva e que as ações ali realizadas possuem um caráter de entidade autônoma que tende a estimular a cidadania daqueles que vivem na Maloca (nome que foi atribuído ao lugar pelos moradores)2. Nesse local, considerado lar, independentemente de diferentes tipos de doações, os moradores conseguem manter uma estrutura sólida familiarizada, sem vícios assistencialistas.
O time nasceu, portanto, desse cenário coletivo, contando com diversas ações que visam a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. A própria Maloca é uma alternativa para a população em situação de rua do entorno, na questão do residir, cedendo um espaço para que os sujeitos montem uma casa com seus pertences e familiares. O uso do espaço é discutido em assembleias gerais, o que reafirma o protagonismo dos indivíduos presentes nessa engrenagem de apoio mútuo. Vale ressaltar que tudo que ocorre na Maloca é planejado sem nenhuma influência partidária.
Analisando o espaço, é possível dizer que, através dele, o morador em situação de rua está inserido em um processo transformador, pois conta com espaços de recursos básicos, além de espaços de convivência, lazer e eventos. Esse local demonstra como o espaço pode ser utilizado para fazer com que minorias sociais se reconheçam como parte da sociedade, mesmo com a tentativa do Estado de tirá-los do que eles próprios construíram (laços afetivos, política autônoma no trabalho coletivo, cooperação).
Esse caráter crítico e de reconhecimento da posição do sujeito periférico na sociedade pode ser visto na imagem a seguir:

Nos relatos obtidos, pode-se perceber a convicção dos jogadores em dizer que o time é movido pelo sentimento de disputa e o zelo em informar que estão jogando por um motivo: lutar pelo direito do morador em situação de rua. Como torcedores, eles se entristecem ao dizer que já perderam para muitos times de “playboys”, relatando o preconceito que passaram dentro de campo e as barreiras existentes de locomoção, como o valor do transporte público.
Na conversa com os jogadores, comissão técnica, e na própria pesquisa de campo, notei a resistência dos participantes em dizer que o que eles faziam era um ato de lazer. Atribuo isso ao fato de que a luta do morador em situação de rua é longa e constante. Sempre são colocados à prova e estão engajados no papel de afirmar que são cidadãos e que, como qualquer minoria social, devem ter seus direitos assegurados e serem reconhecidos como parte integrante da sociedade que está em busca de seus ideais e objetivos.
Observar os movimentos que carregam consigo uma história de luta diária, que impõem suas necessidades através de suas práticas, é dar maior visibilidade à organização que representa os cidadãos que passam despercebidos pelo poder público.
Por fim, é possível afirmar que a luta por direitos através do lazer é uma forma de emancipar o sujeito, como o exemplo do time Corote e Molotov, que, nascido de um local onde se prioriza o bom funcionamento de forma autônoma, se transformou em uma atividade que, através do lazer, passou a dedicar-se aos interesses de um todo, minimizando os efeitos negativos que a cidade impõe ao cotidiano dos indivíduos.
1 Importante via de ligação entre o Centro e a Zona Leste. Embaixo do viaduto, vivem famílias que fazem a estrutura funcionar, tornando-o um espaço de moradia, convivência e acolhimento.
2 Ver vídeo sobre a Maloca, da Revista Vaidapé, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nPdIb-V6MfQ. Acesso em: 18 de out. 2023.
Sobre a autora:
Bruna Oliveira da Silva graduou-se em Lazer e Turismo pela Universidade de São Paulo (USP) e cursou mestrado no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da USP.
Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pela autora no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis. O resumo original do trabalho pode ser acessado nos anais do evento: https://www.inctfutebol.com.br/_files/ugd/87bf92_697c72024af642cd83bb144aa4d8b3b9.pdf
Em caso de violência contra mulher, ligue 180 ou acione o canal de atendimento oficial via WhatsApp pelo número (61) 9610-0180. Em situações de emergência, ligue para 190.
Como citar:
SILVA, Bruna Oliveira da. Corote e Molotov: o lazer e a luta do povo de rua. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.13, 2025.
Corote e Molotov: o lazer e a luta do povo de rua. © 2025 by SILVA, Bruna Oliveira da. is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International
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