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Racismo, futebol e castas: o caso Vinicius Jr.

Atualizado: 29 de nov.

Antônio Jorge Gonçalves Soares



Vinicius Jr., brasileiro que joga pelo Real Madrid, tem sido reiteradamente vítima de ações racistas durante uma partida de futebol.  Não vou aqui descrever os detalhes do fato que foi amplamente divulgado pelas mídias. Um, dois ou mais torcedores do Valencia, à beira campo, protagonizaram ações racistas, através de gestos e falas, comparando grotescamente Vinícius Jr. a macacos. Essa não foi a primeira vez que Vinícius teria sido alvo desse tipo de agressão racista e gratuita. Sua reação foi forte, esbravejou e agiu solicitando a interrupção do jogo. A partida de jogo transcorreu num clima tenso que culminou na sua expulsão ao final dela.


Mesmo após a repercussão do episódio em escala global, os dirigentes do futebol espanhol tentaram minimizar o fato, mas tiveram que recuar, anular a suspensão do jogador e assumir a bandeira do antirracismo. Poderíamos listar outros episódios de ações racistas de torcedores que jogaram bananas no campo, ou mesmo de jogadores que tentam desestabilizar os adversários com ofensas do mesmo tipo ou homofóbicas. Mas, a questão que nos interessa aqui é entender a configuração desse esporte e quais significados se exprimem nessas manifestações racistas durante a competição.


O futebol se conformou como espaço de expressão da masculinidade ou como coito privado masculino, como disse Eric Dunning. Tal como outros esportes de invasão de território, este também se caracteriza como um jogo que mimetiza a guerra. O futebol seria uma “guerra de infantaria” que demanda avanço no território do adversário, já o voleibol se assemelharia à “guerra de artilharia” por jogar seus mísseis no território do adversário sem invasão, assim pensava Artur da Távola. Não é à toa que parte da gramática do próprio esporte, inclusive da mídia e dos torcedores, utiliza termos associados à guerra. O modelo disponível de guerra que temos se dá entre estados ou nações, assim, também as identidades coletivas são acionadas para combater o adversário no esporte que, certas vezes, é visto como inimigo. Na guerra, há normas que regulam esse tipo de confronto entre estados-nação ou nações, mas sabemos que elas nem sempre não são obedecidas e temos em nossa história as maiores atrocidades protagonizadas pelos humanos. Para além da estrutura e da gramática que configura o esporte, o equilíbrio psicológico diante do adversário se torna fundamental para que as táticas e os desempenhos técnicos e físicos tenham eficácia.


Faço esse movimento para dizer que as expressões e agressões racistas no futebol poderiam ser lidas como uma das formas utilizadas, por jogadores em campo ou torcedores, para desestabilizar o adversário; associado a isso poderia se dizer que tais agressões expressam a masculinidade guerreira mimetizada no futebol. Para além do fato que tais ações racistas possam ser afloradas pelos elementos que configuram uma tensa competição, o clima do jogo não justifica ou atenua que o racismo surja como estratégia para agredir ou desestabilizar jogadores em função da cor da pele.


O futebol moderno, como uma espécie de contrato social “perfeito”, coloca, em tese, todos em pé de igualdade diante das regras do jogo. O futebol é, assim por dizer, um tipo de ritual disjuntivo, pois, iguala para diferenciar. Historicamente, pretos e/ou pobres foram segregados do futebol dos grandes clubes, mas esse esporte rapidamente se popularizou, se profissionalizou e tornou-se parte da indústria do entretenimento. Com isso não pôde prescindir dos talentos oriundos das camadas populares. Além disso, os esportes, e o futebol principalmente, sempre fizeram parte de um mercado de apostas, assim, em muitos casos os preconceitos de raça e classe eram secundarizados em favor do desempenho das equipes. De fato, o alto desempenho é um dos principais valores da competição esportiva e configura a estrutura desse fenômeno. Desta forma, a seleção de talentos e virtuosos no futebol, independentemente da cor da pele, permitiu que negros e outras etnias localizadas na base na pirâmide social tivessem acesso a esse tipo de profissão, mesmo antes de sua legalização. Poder-se-ia perguntar: como um esporte que se populariza, permite mobilidade econômica para negros e/ou membros das classes populares, valoriza financeiramente o alto desempenho, está estruturado num contrato social, permite que agressões racistas apareçam aqui e acolá? Como jogadores negros que estão no topo carreira esportiva, se tornaram milionários e famosos pela competência técnica e física que apresentam nos gramados, ainda são vítimas de racismo numa sociedade de classes?


Como sabemos, as promessas das democracias liberais, que os indivíduos seriam medidos e recompensados por seus méritos e competências, independente da origem, cor da pele, do corpo, não se cumpriram para muitos grupos sociais. Temos uma longa história de luta para que origem social, parentesco, religião e cor da pele não sejam adscrições que definam privilégios ou lugares dos indivíduos e grupos na estratificação social. Devemos ter consciência que a sociedade de classes não conseguiu romper com a estrutura de castas presentes no velho mundo. As estruturas de casta e de classe convivem em nossa cultura. Se, economicamente, pode haver mobilidade para negros, isto não significa que deixem de ser encarados como aqueles que pertencem às castas mais baixas na sociedade. Na estrutura de castas não há mobilidade, o status está definido no nascimento e/ou pela materialidade do corpo. Assim, as castas baseadas na cor da pele tomaram pretos e pretas como impuros, brancos e brancas como sinais de pureza e transformaram os corpos com cor, com matizes de cor entre os extremos em castas intermediárias. Isso significa que quando um negro está no alto da pirâmide intelectual ou econômica, a gramática da casta deve lembrar que ele está no lugar errado. Negros, mesmo com contas bancárias recheadas de dólares ou euros, não são poupados de diferentes constrangimentos no espaço público. Ser negro é ainda uma adscrição de perigo em nossas democracias liberais.


Sobre o autor:

Antônio Jorge Gonçalves Soares: é Professor Visitante da UFRN; Professor Titular da UFRJ e membro do INCT Futebol.


Como citar :

SOARES, A. J. G. Racismo, futebol e castas: o caso Vinicius Jr. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.30, 2024.


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1 Comment


rial
Oct 28

Excelente, Antonio!!

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