Victor de Andrade Melo
Se não foi a melhor, foi a mais incrível cerimônia de abertura que assisti. Foi corajosa em todos os detalhes, até mesmo no tradicional desfile de atletas e na cerimônia da tocha. Saiu do usual em tudo, recriando a tradição, sem a abandonar. Incorporou sem parcimônia antigos e novos arranjos das linguagens – artes plásticas, cinema, literatura, dança, música, moda, colocando de forma explícita o esporte nesse quadro.
Prestou tributos ao passado francês, mas foi paulatinamente o conectando com o presente, com aquilo que a França (o mundo?) pode (deve?) ser: da música clássica à eletrônica, de Lumière e Méliès a Minions, de Mona Lisa ao grafite, do balé às danças urbanas, do atletismo ao breaking – inovações esportivas na cidade que já sediou duas outras edições dos tempos primordiais da competição. Passado, presente e futuro em continuum. Cruzou, sem economia, imagens e símbolos de tempos distintos. Antiguidade, medieval, moderno e pós-moderno em diálogo constante.
Desfilou bandeiras atuais, corpos diversos, gentes diversas, desejos de respeito à diversidade, liberdade, fraternidade/sororidade – na cerimônia, as velhas bandeiras da Revolução Francesa foram relidas, assim como o hino nacional francês. Num cenário em que avança a extrema-direita, é um grito de contraposição. Explicita o quanto o esporte pode ser bandeira de luta, ou veículo de luta, ou sempre é a expressão do que há de melhor e pior dos seres humanos, por isso, tão fascinante.
É utopia? É. E isso é algo bom do esporte. Quem pode viver sem utopia? Mesmo que em si o campo esportivo não seja ingênuo e não esteja fora das tensões de qualquer quadro social – lógico que não! –, é um sopro de projeto utópico em meio a um mundo cada vez mais distópico. Não se trata de ser ingênuo. Nem de desconhecer todas as ambiguidades e contradições. Nem todos os problemas. Apenas se trata de crer que símbolos podem também ser importantes. Recorde é um conceito-chave do esporte. É ele que permite pensar que é sempre possível se superar. Por isso a história é tão importante para o esporte. Talvez seja uma lição legal. Inclusive para criticar o próprio esporte.
Além de tudo, a cerimônia foi de uma competência técnica impecável para quem viu. Foi televisiva, sim. Mas o que não é? Por que não ser? Colocou a tecnologia a serviço da emoção. Não sei se foi bom para quem assistiu ao vivo. Já vivi Jogos Olímpicos na minha cidade. É bem mais bacana assistir em outras cidades. Imagino os milhares de problemas e tensões que enfrentaram os parisienses nesses anos. Imagino, não, lembro bem. Mas se nos ativermos à cerimônia de abertura, foi um magnífico começo. Pelo menos para quem viu de longe.
Mais, foi corajosamente parisiense, algo que não fomos no Rio com o papo de que eram Jogos do Brasil. Descaradamente exaltou Paris. E quem dirá que a Cidade Luz não merece? Pode-se gostar mais ou menos dela, só não se pode negar a sua importância na história dos últimos séculos.
Ao mesmo tempo, a partir de sua capital, a França gritou para o mundo que ainda é a antiga França do imaginário de tempos em que exalava as ideias de amor, poesia e liberdade. E de novidade, a terra da Nouvelle Vague, da Nouvelle Cuisine, da avant-garde, do maio de 1968. Podemos acreditar nisso, no passado e no presente? Não, exatamente. Mas também não podemos discordar exatamente. E podemos sonhar, né? E também não é para isso que servem os Jogos?
Foi linda a cerimônia. Foi emocionante a cerimônia. E me deixou ainda mais convicto de que o esporte é das mais incríveis invenções humanas por tudo que pode dramatizar. É sempre bom lembrar que os seres humanos podem fazer coisas legais. Que alegria ter dedicado parte significativa de minha vida para estudar (e me deliciar) com esse treco chamado esporte.
Vou tomar uma água para me reidratar. E um vinho. Um Bordeaux que tenho por aqui. Para celebrar a esperança. Tem muita emoção pela frente!
Sobre o autor:
Victor de Andrade Melo: Professor Titular da UFRJ e membro do INCT Futebol
Como citar:
MELO DE ANDRADE, Victor. Notas sobre a abertura dos Jogos Olímpicos: escritas no calor da emoção. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.17, 2024.
Notas sobre a abertura dos Jogos Olímpicos: escritas no calor da emoção © 2024 by MELO DE ANDRADE, Victor. is licensed under CC BY-NC 4.0
Comments