Museus de futebol, memória e aprendizado: uma passagem pelo Mâs Monumental, do River Plate
- INCT Futebol
- 5 de jun.
- 7 min de leitura
Hamilcar Silveira Dantas Junior (UFS)
Cristiano Mezzaroba (UFS/INCT Futebol)
No texto a seguir, os autores relatam como foi a experiência de visitar o museu do River Plate, em Buenos Aires.

Era manhã do dia 17 de abril de 2025, e havíamos feito uma programação para visitarmos o Espacio Memoria y Derechos Humanos, ex-ESMA (antiga Escola Superior de Mecânica da Armada), na região norte da cidade de Buenos Aires, Argentina. Durante a ditadura militar na Argentina, era esse o lugar onde aconteciam as torturas, prisões e violências de toda ordem, inclusive contra mulheres grávidas, cujos bebês, após o parto em centros clandestinos de detenção, eram sistematicamente retirados e entregues ilegalmente a famílias ligadas ao regime, apagando deliberadamente sua identidade e origem. Esse brutal período ocorreu entre 1976 e 1983, após um golpe militar a partir do qual se estima que mais de 30.000 argentinos(as) tenham sido torturados(as) e assassinados(as) pela violência estatal. O local em questão foi convertido em espaço de visitação e de memória desde 2004. Em 2023, o Museu da ESMA se tornou Patrimônio Mundial da Unesco (ONU).
Desde dezembro de 2023, quando o atual presidente Javier Milei tomou posse, organizações sociais e espaços de memória como esse têm sofrido ações sistemáticas de enfraquecimento e de negacionismo histórico. Em governos de extrema-direita, esse é um tipo de ação bastante comum realizada contra ambientes que reivindicam transparência em relação às atrocidades cometidas pelo Estado. Nesse caso, isso ocorre em um país reconhecido, tanto na América Latina quanto no mundo, como uma nação que encarou a verdade da ditadura militar e procurou culpabilizar seus responsáveis. Em um primeiro movimento, o Governo Milei demitiu uma série de funcionários e diminuiu sensivelmente os vencimentos dos que permaneceram em seus cargos. Em medida recente, abriu o sigilo dos documentos dos militares julgados pelas ações de violência na época da ditadura, não para dar transparência, mas para demonstrar que eles teriam sido injustiçados, por combaterem o “terrorismo” comunista na Argentina.
Quando chegamos ao portão de entrada do Espaço de Memória, vimos que ele estava fechado, sem nenhuma informação sobre qual seria o horário de atendimento naquela semana. Acontece que, para além do contexto anteriormente apresentado e do fato de que estávamos em um dia útil, era uma véspera de feriado, o da Sexta-feira Santa. Um funcionário do local nos informou que o espaço só reabriria na segunda-feira seguinte, após a data religiosa. A Argentina é um país com grande predomínio de católicos.
Naquele dia, fazia parte dos planos seguir da ESMA ao Estádio Mâs Monumental (Estádio Monumental Antonio Vespucio Liberti), também conhecido como Monumental de Nuñez, do grandioso River Plate. Esse clube e o Boca Juniors são os maiores e com maior torcida em Buenos Aires e na Argentina. Atualmente, o Mâs Monumental tem capacidade para 85.000 torcedores, sendo o maior estádio da Argentina e da América do Sul. Ele foi palco, no final de 2024, do jogo decisivo da Libertadores entre os clubes brasileiros Atlético/MG e Botafogo/RJ. Do ESMA ao Monumental, são 2,5 km de distância, uma caminhada de 20 a 30 minutos, em um espaço geográfico que revela a aproximação e o entrelaçamento entre futebol, história, política e cultura. Mais uma comprovação do quanto futebol e política estão muito relacionados!
Durante o período repressivo, a ESMA foi o órgão de detenção e tortura não oficial da ditadura argentina. Em meio à Copa do Mundo de 1978, os gritos de dor abafados na ESMA se confundiam com os gritos de alegria que emanavam do Monumental enquanto a seleção comandada por César Luís Menotti ia vencendo suas partidas e se sagraria Campeã do Mundo. O cenário de terror e a profunda perversão dos que comandavam a tortura na ESMA foram amplificados na tarde e na noite do dia 25 de junho de 1978. Segundo a socióloga Graciela Daleo, ela e outros presos torturados foram levados em um carro para assistir às celebrações da conquista do Mundial pelas ruas de Buenos Aires. A tortura nunca é apenas física, ela é também emocional e simbólica.
Fundado em 26 de maio de 1938, o Monumental foi sede da final da Copa do Mundo de 1978 entre Argentina e Holanda, com a vitória dos hermanos pelo placar de 3x1. O estádio passou por uma ampla reforma de outubro de 2020 até a véspera da final da Libertadores de 2024, com a retirada da pista de atletismo e a implementação de um gramado híbrido, que, de tão belo e bem cuidado, parece artificial. Atualmente, é possível fazer a visita guiada completa. O ingresso Museo + Estadio Tour Full é o mais caro. Ele envolve o passeio pelas arquibancadas e pelo gramado, passando pelo vestiário da equipe visitante e finalizando com o museu do clube. Pode ser feita também apenas a visita ao museu, com valor do ingresso mais barato. Outra opção é o passeio que contempla o museu e as arquibancadas, chamado Museo + Visita Express.
O Museo River foi fundado em 9 de novembro de 2009 e possui mais de 3.500 metros quadrados de extensão. Ele conta com vários ambientes muito bem pensados e diversos recursos tecnológicos. Na parte inicial do passeio, por exemplo, simula-se um verdadeiro “túnel do tempo”, cronológico e linear, do começo do século XX até os dias atuais.
A partir do corredor principal, temos acesso a portas que conduzem a décadas específicas. Cada uma das pequenas salas que se abrem contém telas com sistemas de som, apresentando cada contexto histórico, tanto no que se refere aos principais acontecimentos da Argentina quanto aos grandes marcos mundiais. De forma geral, essas salas contêm alguns elementos em comum. Um deles são os quadros com dados dos jogadores, contendo informações quantitativas das competições, com ênfase nas vitórias e conquistas. Outro são seleções de objetos e peças que marcaram o ambiente cultural da Argentina e do mundo naquele momento. Em todos esses ambientes, há uma televisão transmitindo imagens e sons, com vídeos curtos – em torno de 5 minutos cada – abordando aspectos econômicos, culturais, sociais, políticos e esportivos da Argentina e do mundo em relação à década em questão.
Em seguida, chega-se à sala dos troféus, com a materialização das principais conquistas do clube, inúmeras vezes campeão argentino, quatro vezes campeão da Libertadores e campeão mundial de clubes em 1986. Continuando o passeio pelos corredores do museu, temos um pequeno auditório com projeção de cinema, contendo também fotos e maquetes dos estádios já utilizados pelo clube. Além disso, é possível ver, na sua forma original, os assentos de madeira da primeira versão do estádio.
Essas abordagens interativas e multimidiáticas convergem com o que o historiador britânico Paul Connerton entende como movimentos de enraizamento da memória das sociedades. Neles, as cerimônias comemorativas e as práticas corporais seriam os elementos centrais do que o autor denomina como “sedimentação da memória social corporal”. Os espaços museológicos de futebol, de modo específico o Museu do River Plate, adotam essa dinâmica: a celebração ritualística dos eventos, das conquistas e dos heróis. A memória se solidifica à medida que afeta os sentidos do público que interagem com as imagens e os sons, se inebriando corporalmente com os símbolos materializadores da memória afetiva, social e coletiva.
A pedagogização da história tem fins de enraizamento da memória. A estrutura dos museus de futebol não fala apenas aos seus torcedores e apaixonados. Ela busca dar uma dimensão épica à existência do clube e aos sujeitos que o construíram com a finalidade de sedimentar, no imaginário coletivo, a relevância social do clube e da sua história.
Outro espaço que chama a atenção no Museu e que faz refletir sobre o quanto o nosso olhar constata permanências e valores é o dedicado aos presidentes do clube. Evidencia-se, ali, o quanto o futebol é uma prática marcada por uma cultura machista. Enquanto espaços pedagógicos, mas também espaços de poder, os museus refletem uma tendência de normatizar gênero e sexualidade, demarcando o desviante ou o diferente pela exclusão e o silenciamento. Historicamente, o futebol foi um espaço do masculino, cada vez mais aberto ao feminino dentro das quatro linhas. Não obstante, no quadro de dirigentes, são exceções muito óbvias as mulheres que ocupam cargos de gestão, ou mesmo Presidência dos clubes. Em uma cultura do patriarcado, os retratos de gestores que ocupam as paredes dos museus, que dão nomes a salas ou mesmo a estádios, são sempre de homens (brancos), os demarcadores da força, pujança, potência e virilidade.
Um dos ecos desse movimento pode ser visto nas lojas de souvenirs, anexas aos museus, que se mantêm exclusivamente vendendo materiais esportivos: camisas, bonés, shorts, agasalhos, flâmulas. Ainda que já existam uniformes exclusivos para o público feminino, eles são mimetismos dos masculinos. Por seu turno, não há opções de artesanato, fotos, postais, livros ou quaisquer outros produtos que façam alusão a uma cultura menos enraizada no poder do clube, um poder masculino, Monumental.
Por fim, entendemos que esses espaços museológicos do futebol têm uma função marcadamente pedagógica que precisa ser incentivada. Sobretudo, precisa ser mediada por ações educativas e um olhar crítico de historiadores, antropólogos e professores de Educação Física. 1 Pode-se ler sobre o tema em: https://operamundi.uol.com.br/politica-e-economia/avos-da-praca-de-maio-acusam-milei-de-tentar-fechar-museu-da-memoria-da-ditadura/. Acesso em: 2 de jun. 2025. 2 Pode-se ler sobre o tema em: https://veja.abril.com.br/mundo/por-que-milei-derrubou-sigilo-de-documentos-militares-da-ditatura-na-argentina/. Acesso em: 2 de jun. 2025.
3 Ver o filme Memórias do chumbo: o futebol nos tempos do Condor – Argentina. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cCb_UjiskbA&t=2324s. Acesso em: 2 de jun. 2025.
Sobre os autores:
Hamilcar Silveira Dantas Junior é Professor Titular do Departamento de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema e Narrativas Sociais da Universidade Federal do Sergipe (PPGCINE/UFS). Licenciado em Educação Física (UFS), mestre em Educação (UFS) e Doutor em Educação (UFBA), com estudos nos campos de História da Educação, Educação Física e Cinema.
Cristiano Mezzaroba é doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do Departamento de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS). Coordenador do GEPESCEF – Grupo de Estudos e Pesquisas Sociedade, Cultura e Educação Física da UFS. Coordenador da linha “Mídias, Torcidas e Movimentos Antirracistas” do INCT Futebol.
As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.
Os museus são espaços muito importantes no universo do futebol. Se você gosta deste tema, irá gostar também do nosso texto: Visibilidade e representação: a coleção de futebol feminino do Museu do Grêmio.
Como citar: DANTAS JUNIOR, Hamilcar Silveira; MEZZAROBA, Cristiano. Museus de futebol, memória e aprendizado: uma passagem pelo Mâs Monumental, do River Plate. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.17, 2025. Museus de futebol, memória e aprendizado: uma passagem pelo Mâs Monumental, do River Plate © 2025 by DANTAS JUNIOR, Hamilcar Silveira; MEZZAROBA, Cristiano. is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International
Comments