Alexandre Fernandez Vaz
Há poucas semanas, o Jornal Folha de São Paulo noticiou que o crescimento do vício em apostas no Brasil tem causado endividamento crescente entre trabalhadores, que passam a recorrer de forma intensa a seus empregadores em busca de adiantamentos salariais. Como se pode deduzir, a coisa não tem fim: dívidas e apostas são um par incessante que se retroalimenta, jogando com a expectativa de ganhos que se materializam, necessariamente, em frustrações. A banca nunca perde, seja na forma dos sites de aposta, seja no mercado financeiro. O eventual sucesso de um ou outro apostador é apenas um mecanismo para manter as coisas em ordem, ou seja, para todos os outros perderem. Não deve ser fácil para quem joga, uma vez que alguns possivelmente supõem de si mesmo serem dotados de muita perspicácia e capacidade de análise, além de sorte, tomados, quem sabe, por uma névoa narcísica das mais espessas. Associado esse quadro ao puro e simples vício, temos uma situação desoladora: jogar para ter o pico de esperança que logo será nova frustração, até a insolvência completa.
Coisa de gente doente? Sim, pelo menos uma parte desse grupo é formada por pessoas que precisam de apoio e proteção, e o melhor seria, então, que a cirandas das apostas não existisse. Estaríamos mais ou menos protegidos. Mas não é assim que acontece, muito menos ainda em tempos de internet, em que se pode acessar um site desses quase que instantaneamente. Para aumentar o estrago, muitos programas esportivos, assim como clubes de futebol, são patrocinados por empresas de apostas. Como se já não bastasse as muitas logomarcas que conspurcam as camisas das equipes, há a presença de algumas que são pra lá de constrangedoras, como escrevi há poucos anos 1. Mas nada se compara ao elogio da dependência, que são as propagandas das casas de jogos nos uniformes dos jogadores. O mau exemplo, aliás, começa com o time pelo qual torço, o Corinthians. Ou começava, já que o contrato entre ele e uma empresa dessas foi recentemente cancelado por suspeitas agudas de corrupção. “Ah, mas, sem tal investimento, o futebol não vive!” Se é assim, prefiro então que o esporte, neste formato, morra.
Já se fez no esporte muita publicidade de produtos geradores de dependência, como álcool e cigarro. Bjorn Borg simulava bebericar uma dose de whisky, a título de relaxamento, depois de um treino ou jogo. O maior tenista de sua geração, cinco vezes campeão em Wimbledon e sete em Roland-Garros (isso tudo entre 1976 e 1981, muito antes, portanto, da era dos superatletas) não consumia álcool, diferente de outros que, de fato, apresentavam produtos que efetivamente consumiam, ainda que não necessariamente da mesma marca. Não sei se Gerson, o grande Canhotinha de Ouro, era adepto dos cigarros Vila Rica, que ele divulgava, mas, como é mais que sabido, ele fumava muito já nos tempos de jogador de futebol. Nos anos 1970, depois de encerrada a carreira, ele dizia preferir aquele fumo porque era gostoso, suave e não irritava a garganta. Então, perguntava: “Por que pagar mais caro se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!” O grande craque ficou estigmatizado pela frase que, fora do seu sentido original, virou sinônimo de oportunismo. Era a tal “lei do Gerson”. Tudo isso foi uma injustiça para com ele, assim como aconteceu – mas por vias ainda mais tortas – com o autor original da Lei Rouanet, o diplomata e então secretário nacional da cultura, um dos maiores intelectuais brasileiros do século vinte, Sérgio Paulo Rouanet. Ele ganhou triste notoriedade pelos insultos que sofreu de bolsonaristas entre 2018 e 2023. Em seu contumaz modus operandi, esses porta-vozes da irracionalidade e da mentira não sabiam o que estavam dizendo, tampouco a que se referiam, vociferando idiotices nas redes sociais.
Nos anos 1980, uma marca de cigarros estabeleceu um modelo de propaganda que associava seus produtos a esportes radicais, na natureza, protagonizados por jovens, principalmente. O mote era definitivo: “Hollywood, o sucesso!” Havia surfistas patrocinados pela marca que, ademais, emprestava seu nome a campeonatos de vela assim como a festivais de música. A Fórmula 1, por sua vez, durante muitos anos teve seus bólidos cobertos de publicidade de tabaco, também presentes nos macacões e bonés dos pilotos: Gold Leaf, John Player Special, Marlboro, Camel, Gitanes, Rothmans e Mild Seven eram algumas delas.
Já não se propagandeia nicotina, tampouco álcool, nos esportes, mas o jogo segue firme e forte. A pitada de amargura sobre o sofrimento de tantos apostadores veio da grave acusação contra Lucas Paquetá, ótimo jogador e destaque na Premier League e na seleção brasileira, que teria tomado propositalmente cartões amarelos para beneficiar apostadores. Outros brasileiros já foram condenados. Eles, todos com nível técnico e padrão salarial muito abaixo dos do meia-atacante formado no Flamengo, teriam recebido dinheiro pelos atos praticados. Algo semelhante ocorreu com o tenista João Souza, o Feijão, banido do esporte por envolvimento em manipulação de resultados. Esportistas sabem o que estão fazendo e são responsáveis por seus atos, mas a positividade do jogo (“faça sua fezinha”) só ajuda a abrir um espaço para a realização de malfeitos. Torço muito para que Paquetá seja inocente.
No limite, a própria noção de malfeito precisaria ser relativizada, já que supõe uma pureza que o esporte não tem, nunca teve, tampouco terá, a prosseguir o modelo vigente. Mesmo assim, não se pode admitir que os contendores não desejem vencer e deixem de dar o máximo para isso, coisa que, no entanto, tampouco acontece sempre. Sem tal expectativa, a relação com o futebol fica muito prejudicada, já que a fantasia é suspensa e, sem ela, a identificação com fenômeno se esvai. Tudo isso é importante, mas não é porque as casas de aposta têm prejuízo com os arranjos de resultados. Lamento muito, aliás, que elas existam.
SOBRE O AUTOR:
Alexandre Fernandez Vaz: Professor Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq).
COMO CITAR:
Fernandez Vaz, Alexandre. Futebol entre apostas e vícios. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.13, 2024.
Futebol entre apostas e vícios © 2024 by Alexandre Fernandez Vaz is licensed under CC BY-NC 4.0
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