Esporte Seguro no futebol de mulheres brasileiro: uma utopia ou há um caminho?
- INCT Futebol
- há 6 dias
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Ludmila Mourão (UFJF) e Bárbara Pires (UFJF)
No texto a seguir, as autoras falam sobre a importância de ações em torno da conscientização e implementação de ambientes de trabalho seguros para mulheres do futebol.

Iniciamos este texto exaltando e reverenciando instituições, pesquisadoras e pesquisadores que se preocupam com a propagação da temática do “Esporte Seguro” no Brasil. Podemos citar o trabalho do Comitê Olímpico do Brasil com o Programa Esporte Seguro e os cursos disponibilizados pelo Instituto Olímpico Brasileiro[1], a Joanna Maranhão na organização intitulada “Sport & Rights Alliance”[2] e o Lucas Machado, responsável pelo perfil no Instagram (@esporte.seguro)[3]. Entretanto, dentro das quatro linhas gramadas do nosso futebol de mulheres, essas discussões ainda não estão em voga como deveriam (Pires, 2023).
Para continuarmos o diálogo, se faz necessário conceituar o “Esporte Seguro”, sabendo que, assim, começaremos na mesma página. Esse termo diz respeito a propiciar um ambiente seguro de prática esportiva, configurado pelos seus responsáveis, certificando que as pessoas envolvidas – principalmente atletas – se sintam protegidas de qualquer risco físico, emocional e psicológico.
Na prática, podemos postular um ambiente esportivo seguro da seguinte forma: a) requer ações de prevenção de lesões (e posterior suporte à lesão, se ela acontecer); b) combate às violências do esporte (assédio e/ou abuso sexual, assédio moral, violência psicológica, física, de gênero, negligência e bullying); c) procura garantir um ambiente livre de discriminações, quanto às diferenças de gênero, raça, classe social, religião e/ou orientação sexual.
Depois dessa breve definição, te convidamos a perpassar pela história do futebol de mulheres brasileiro e refletir sobre algumas das suas particulares que permeiam questões culturais e sociais.
O futebol chegou ao nosso país no final do século XIX e, desde então, o Brasil passou a ser reconhecido como o “país do futebol”. Nessa direção, a construção da identidade brasileira e a massificação do futebol no Brasil, sendo até considerado esporte nacional, era um espaço representativo dos homens nacionais, não das mulheres. Assim sendo, perante a sociedade patriarcal, escravocrata, militarista e higienista brasileira do século XX, o futebol não era passível de ser apreciado, discutido e muito menos protagonizado por mulheres, de modo que o cognome “país do futebol” não dizia ou referenciava sobre elas (Silva, 2023).
Privações e estigmas permeiam o futebol de mulheres desde a sua criação, vide o período de proibição (1941-1979) e a tentativa de controle social e político do que os corpos das jogadoras poderiam ser capazes ou não de fazer (Almeida; Almeida, 2020). Além disso, depois do período de regulamentação da modalidade, o corpo da mulher atleta – saudável e observado como sexualmente atrativo – começou a ser valorizado pela mídia, principalmente. Desde então, os corpos das mulheres atletas são sexualizados, objetificados e erotizados por parte dos espectadores e imprensa (Rial; Almeida, 2024).
Em outra aspecto, considerando que força, virilidade, agressividade e coragem são características valorizadas no jogo de futebol, e esses atributos são tidos como prerrogativa do universo masculino, as meninas e mulheres que praticavam futebol tinham (e ainda têm) as suas sexualidades colocadas em suspeição, sendo atribuído a elas o estereótipo da homossexualidade (Kessler, 2020).
De outro modo, o futebol de mulheres também se destaca como sendo um espaço homossocial para mulheres lésbicas ou bissexuais (Yamamoto, 2024). Entretanto, a homofobia ainda existe no cenário esportivo e, por diversas vezes, ela é protagonizada por personagens que ocupam posições de poder, como familiares das atletas, treinadores/as, membros da comissão técnica e gestores/as.
Mesmo que haja, essencialmente, possibilidade de mobilidade nas relações de poder (Foucault, 2022), as atletas não estão imunes a experiências violentas de assédio e abuso físico, sexual e emocional (Stirling; Kerr, 2009). Como implicante ponto de atenção, o futebol no Brasil foi constituído em um espaço masculinizado e masculinizante, logo, a maior parte dos personagens envolvidos no futebol de mulheres brasileiro ainda são homens. Sendo assim, além da relação hierárquica e desigual entre treinadores, gestores e outros membros da comissão técnica, ainda temos em questão a relação patriarcal entre homem-mulher.
Quando eu, Bárbara, trabalhei como treinadora de futebol nos Estados Unidos da América em 2017, me deparei com uma gama de cursos e diversas recomendações de prevenção ao abuso e assédio às crianças e adolescentes. A partir de então, comecei a me atentar mais acerca dessa questão e realizei diversos cursos como: “Esporte Seguro”, “Safeguarding”, “Prevenção ao abuso e assédio” e “Criando um ambiente seguro no esporte”. Todos são gratuitos, mas estão disponíveis somente em inglês em plataformas online como a U.S. Center for SafeSport[4]; Athlete 365 by IOC[5]; Safe To Compete[6] e FIFA Guardians[7].
No nosso idioma, dois cursos são disponibilizados no site do Comitê Olímpico do Brasil (COB)[8]: “Prevenção e Enfrentamento ao Abuso e Assédio” e “Abuso e Assédio Fora de Jogo”. O primeiro é direcionado a treinadores/as de modalidades esportivas; o segundo contém uma linguagem acessível e é dedicado a jovens atletas.
Sendo assim, gostaríamos de evidenciar dois problemas: 1) a maior parte dos cursos disponíveis sobre prevenção de abuso e assédio no esporte está em língua inglesa e não possui traduções para o português, o que pode torná-la inacessível para grande parte dos/as treinadores/as de futebol no país; 2) o futebol não está diretamente ligado ao COB, mas sim à Confederação Brasileira de Futebol, construindo assim, uma dificuldade para a ampla divulgação dos cursos e documentos norteadores para treinadores/as e atletas.
No que concerne à Confederação Brasileira de Futebol, o que nos remete ao assunto é o afastamento do ex-presidente Rogério Caboblo, por assediar moral e sexualmente uma funcionária da CBF em 2021, e o posterior protesto das então atletas da Seleção Feminina de Futebol, conforme ilustrado na foto que inicia este texto. O afastamento foi decretado pela Comissão de Ética do Futebol Brasil, mas uma liminar foi concedida pela Justiça do Rio de Janeiro em 2024 e a suspensão foi anulada.
É neste cenário do futebol brasileiro permeado por complexidades que envolvem questões culturais e sociais que estamos a caminhar dois passos para frente e, logo depois, cinco para trás. Dito isso, ainda há muito o que avançarmos em debates, problematizações, discussões e aprendizados no que diz respeito à implementação de políticas de “Esporte Seguro” no universo do futebol de mulheres brasileiro, principalmente dentro da Confederação que o rege.
No entanto, influenciada pela coragem das protagonistas do jogo, que não se calaram na referida situação envolvendo o mais alto escalão da Confederação, é vital seguirmos lutando, intentando e sonhando com um futebol mais justo, igualitário, seguro e saudável para meninas e mulheres de todo Brasil.
Referências:
ALMEIDA, Caroline Soares de; ALMEIDA, Thaís Rodrigues de. “Deve ou não deve o football invadir os domínios das saias?”: histórias do futebol de mulheres no Brasil. CSOnline – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, n. 31, p. 168–191, 2020.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 14. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2022.
KESSLER, Cláudia Samuel. “São tudo sapatão”: lesbianidades e heteronormatividade no futebol/futsal. Revista Brasileira de Estudos do Lazer, Belo Horizonte, v. 7, n. 3, p. 45-62, set./dez. 2020.
PIRES, Bárbara Aparecida Bepler. Relações interpessoais entre treinadores/as e atletas no futsal de mulheres. 2023. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2023.
RIAL, Carmen; ALMEIDA, Caroline S. O “gênero da bola”: mulheres e futebol na mídia. ALCEU, Rio de Janeiro, v. 24, n. 52, p. 84-119, jan./abr. 2024.
SILVA, Giovana Capucim e. Nação, masculinidade e o futebol de mulheres no início do século XX. In: SOUZA JÚNIOR, Osmar Moreira de; CARVALHO, Ricardo Souza de; PRADO, Denis (Org.). Do futebol moderno aos futebóis transmodernos: a utopia da diversidade revolucionária. São Carlos: EdUFSCar, 2023. p. 183-207.
STIRLING, Ashley E.; KERR, Gretchen A. Abused athletes’ perceptions of the coach-athlete relationship. Sport in Society: Cultures, Commerce, Media, Politics. Londres, Inglaterra, v. 12, n. 2, p. 227-239, mar. 2009.
YAMAMOTO, Débora Cajé. Entre treinadoras e atletas, sexualidade e geração em times de formação no futebol praticado por mulheres. In: XXXIV Reunião Brasileira de Antropologia, 2016, São Paulo. Anais... São Paulo: RBA, 2024.
Sobre as autoras
Ludmila Mourão é graduada em Educação Física, com mestrado e doutorado em Educação Física & Cultura pela Universidade Gama Filho. Pós-doutora pela Universidade do Porto, FADEUP. Professora do programa de pós-graduação em Educação Física da FAEFID/UFJF. Pesquisadora de mulheres no esporte e de gênero e sexualidade, com interesse em diferentes áreas, como educação, lazer e política. É líder do Grupo de Estudos Gênero, Educação Física, Saúde e Sociedade (GEFSS/CNPq). E-mail mouraoln@gmail.com.
Bárbara Pires é atleta, treinadora e pesquisadora do futebol e futsal de mulheres. É bacharela, licenciada e mestra em Educação Física pela UFJF e doutoranda do programa de pós-graduação em Educação Física da FAEFID/UFJF. É pesquisadora no Grupo de Estudos Gênero, Educação Física, Saúde e Sociedade (GEFSS/CNPq). E-mail barbarabepler@gmail.com.
As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.
A participação de mulheres no cenário do futebol é um importante tema de pesquisas, que se desdobra não apenas nos estudos sobre as atletas, mas também sobre dirigentes esportivas. Para ler sobre isso, acesse o nosso texto: A presença feminina na liderança do futebol é realmente reconhecida?
[1] Cursos do IOB. Disponível em: https://www.cob.org.br/cultura-educacao/cursos-do-iob. Acesso em: 7 de jul. 2025.
[2] Site da organização. Disponível em: https://sportandrightsalliance.org. Acesso em: 7 de jul. 2025.
[3] Você pode conhecer a página pelo link: https://www.instagram.com/esporte.seguro/. Acesso em: 7 de jul. 2025.
[4] Confira a página oficial do Safe Sport. Disponível em: https://safesporttrained.org/#/dashboard. Acesso em: 23 de nov. 2024.
[5] Página oficial dos cursos. Disponível em: https://www.olympics.com/athlete365/learning. Acesso em: 7 de jun. 2025.
[6] Acesso a todos os cursos. Disponível em: https://www.safetocompete.org. Acesso em: 7 de jun. 2025.
[7] Página oficial do curso da FIFA. Disponível em: https://safeguardinginfootball.fifa.com. Acesso em: 7 de jun. 2025.
[8] Página oficial com diversos cursos do IOB. Disponível em: https://www.cob.org.br/cultura-educacao/cursos-do-iob. Acesso em: 7 de jun. 2025. Como citar MOURÃO, Ludmila; PIRES, Bárbara. Esporte seguro no futebol de mulheres brasileiro: uma utopia ou há um caminho?. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.29, 2025. Esporte Seguro no futebol de mulheres brasileiro: uma utopia ou há um caminho? © 2025 by Ludmila Mourão e Bárbara Pires is licensed under CC BY-NC 4.0
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