A presença feminina na liderança do futebol é realmente reconhecida?
- INCT Futebol
- 13 de ago.
- 7 min de leitura
Beatriz Mitroff (UERJ)
No texto abaixo, a autora discute a ocupação de cargos de destaque no futebol por Michelle Ramalho e Kelly Key para refletir sobre os desafios que as mulheres ainda enfrentam para ocupar posições de liderança nesse esporte.

Em julho de 2025, a cantora brasileira Kelly Key foi oficialmente nomeada presidente do Kiala Futebol Clube, clube angolano fundado por ela e seu marido, Mico Freitas. O fato chamou a atenção por se tratar de uma mulher, brasileira e artista, assumindo a liderança de um clube de futebol em Angola, sendo, segundo suas próprias palavras, a única mulher nessa função em toda a África. Em paralelo, no cenário brasileiro, a eleição de Michelle Ramalho Cardoso como primeira mulher a ocupar a vice-presidência da Confederação Brasileira de Futebol também rompeu paradigmas dentro de uma instituição historicamente marcada pela exclusão feminina de seus quadros diretivos.
A partir desses dois casos, se abre uma porta para a discussão sobre os modos como a presença de mulheres em cargos de liderança no futebol desafia a estrutura simbólica e institucional patriarcal desse campo. Ainda que distintas em contexto e trajetória, a nomeação de Kelly Key e a presença de Michelle Ramalho na composição da chapa eleita na CBF representam rupturas importantes na lógica de gênero do futebol, ao mesmo tempo em que enfrentam resistências que se expressam sob forma de violência simbólica e silenciamento.
Bourdieu (2002) denomina como violência simbólica a imposição de significados e categorias que naturalizam relações de dominação, especialmente no campo da cultura e do poder. No futebol, essa violência é reiterada por normas não escritas que associam autoridade, competência e liderança a atributos masculinos, produzindo exclusão sistemática das mulheres em posições de decisão (Goellner, 2005).
A violência de gênero, abordada por Rita Segato (2003), opera também pelo silêncio e pela invisibilidade. A exclusão simbólica não exige agressões explícitas: ela se realiza na recusa do reconhecimento, na desautorização da palavra e no apagamento dos feitos. A dificuldade de ambas – Kelly Key e Michelle Ramalho – em terem suas lideranças plenamente legitimadas revela a persistente resistência à presença feminina em espaços de comando como o futebol.
O caso de Kelly Key ilustra essa dinâmica: embora fundadora e dirigente executiva do Kiala FC, sua autoridade é frequentemente deslegitimada. A própria cantora relata que, em reuniões, os interlocutores tendem a se dirigir ao seu marido, ignorando sua posição formal (ESPN, 2025). De forma semelhante, a eleição de Michelle Ramalho como vice-presidente da CBF foi celebrada como marco histórico, mas cercada de discursos que a tratam como exceção ou concessão, e não como resultado de trajetória política e institucional legítima.
Michelle Ramalho é advogada, administradora de empresas e presidente da Federação Paraibana de Futebol desde 2018. Em 2017, atuou como auditora do STJD, defendendo clubes como o Treze. Em 2019, ocupou o posto de chefe de delegação da Seleção Brasileira feminina na Copa do Mundo, repetindo a função nas Olimpíadas de Paris em 2024. Em 2025, foi eleita vice-presidente da CBF, integrando a chapa “Futebol para Todos” liderada por Samir Xaud, com mandato previsto até 2029.
Sua vice-presidência não deveria representar apenas um gesto simbólico, merece ser reconhecida e debatida como um avanço institucional que pode abrir caminhos para a inserção de mais mulheres em cargos estratégicos no futebol brasileiro (Globo Esporte, 2025). Ainda assim, a posição de vice-presidente frequentemente sofre com a invisibilização por parte da sociedade e da própria estrutura esportiva, que tende a concentrar a atenção e a autoridade na figura presidencial. A presença de Michelle, embora formalmente registrada, pode ser negligenciada por muitos que não reconhecem o poder simbólico e político da vice-presidência, reforçando, assim, o padrão de desvalorização dos espaços ocupados por mulheres, mesmo quando legalmente instituídos.

Do mesmo modo, no tocante às ações sociais afirmativas, Kelly Key utiliza sua visibilidade pública para atuar como gestora e educadora social. O Kiala FC oferece aos seus atletas, além do treinamento esportivo, alimentação diária, alojamento, cursos técnicos e apoio psicológico. A proposta do clube vai além do campo: atua na formação de sujeitos e na transformação social, promovendo cidadania por meio do esporte (O POVO, 2025; FOLHAMAX, 2025).
Em ambas as situações, observa-se o que Castoriadis (1982) denominaria como uma prática política instituidora, isto é, uma ação que rompe com o instituído, com a ordem social vigente, e propõe novas significações sociais capazes de reconfigurar o imaginário coletivo. No caso de Kelly Key e Michelle Ramalho, essa prática se materializa na inserção ativa de mulheres em posições historicamente reservadas aos homens, como a presidência de um clube de futebol ou a vice-presidência da CBF. Ao assumirem esses lugares, elas desafiam o status quo e abrem brecha para instaurar novos significados para a presença feminina no futebol, deslocando o campo simbólico que o associa quase exclusivamente ao masculino.
Castoriadis distingue o instituído – as normas, papéis e representações sociais já consolidadas – da instituição do novo, que é um movimento criador, espontâneo e político, capaz de fundar outras formas de organização do mundo. Ao ocuparem cargos de poder e atuação efetiva no esporte, essas mulheres exercem justamente esse papel instituidor: não se limitam a atuar dentro das regras pré-estabelecidas, mas, com sua própria presença, as transformam, produzindo rupturas nas significações dominantes que estruturam o campo esportivo e político.
Esse movimento também ecoa o que Joan Scott (1995) chama de “história da desigualdade de gênero”, uma história marcada por exclusões sistemáticas, silenciamentos e legitimações de hierarquias entre homens e mulheres. Quando Kelly Key e Michelle Ramalho ocupam esses espaços, reivindicam reconhecimento institucional e produzem fissuras nas normatividades de gênero que sustentam o poder masculino no futebol. Através da visibilidade de suas trajetórias, questionam-se os sentidos hegemônicos de autoridade, competência e pertencimento, mostrando que tais atributos não são naturais ou essencialmente masculinos, mas historicamente construídos.
A atuação dessas mulheres se insere em um movimento contra-hegemônico e instituidor de novos sentidos, que busca deslocar as fronteiras do que é possível e legítimo para as mulheres dentro do universo esportivo. Trata-se de uma ação que, embora ainda minoritária, carrega uma potência transformadora: a de reimaginar o futebol como espaço plural, democrático e igualitário.
Ainda que ambas representem conquistas significativas para a presença feminina no esporte, o tratamento midiático evidencia a persistência de um silenciamento estrutural e de uma leitura calcada em um olhar masculinizado. Kelly Key, por exemplo, apesar de gerir um clube africano com resultados concretos e impacto social evidente, tem sua atuação quase ignorada pelos grandes veículos da imprensa brasileira. Quando mencionada, costuma aparecer em chamadas superficiais, reduzindo sua gestão à curiosidade de “celebridade que virou dirigente”, enquanto as decisões administrativas, os programas de base e os indicadores de sucesso do Kiala FC são relegados a notas de rodapé (UOL, 2025). Além de refletir o desinteresse, chama-se a atenção para a forma como a mídia esportiva, historicamente dominada por profissionais, narrativas e imagens produzidas sob uma lógica masculina, invisibiliza a competência e o esforço de mulheres em cargos de comando, privilegiando sempre a figura do “homem no comando” como protagonista legítimo do futebol.
Esse tipo de apagamento revela o que Angela Davis (2016) identifica como o duplo apagamento que afeta mulheres negras em posições de liderança: ao gênero soma-se a raça e, no caso de Kelly Key, também o deslocamento geográfico-cultural (uma brasileira atuando na África). Já Michelle Ramalho, embora tenha sido reconhecida em veículos esportivos, foi inserida em narrativas que a retratam como “exceção bem-comportada”, reforçando a ideia de que a ocupação feminina do poder é uma anomalia institucional, e não um direito político.
Ao falar de Kelly Key e Michelle Ramalho Cardoso, é possível ter um olhar de que o ingresso de mulheres em posições de liderança no futebol não ocorre sem resistência. As formas de violência simbólica, deslegitimação, silenciamento e relativização da competência continuam a operar para manter a estrutura patriarcal do esporte.
No entanto, ambas evidenciam uma inflexão histórica. Elas inauguram uma nova narrativa, que rompe com a lógica de que o futebol é um espaço naturalmente masculino, e abrem caminhos para outras mulheres ocuparem espaços de decisão. Mais do que símbolos, são agentes de transformação que enfrentam, com estratégias distintas, os mecanismos de exclusão de um dos campos mais resistentes à equidade de gênero.
Referências
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
ESPN. Kelly Key conta como criou time em Angola e revela inspiração em Leila Pereira. ESPN, 12 de jul. 2025. Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/15416734/kelly-key-conta-como-criou-time-angola-revela-inspiracao-leila-pereira-palmeiras-chora-falar-kiala-fc. Acesso em: 14 de jul. 2025.
FOLHAMAX. Kelly Key vira presidente de time de futebol em Angola. FOLHAMAX, 14 de jul. 2025. Disponível em: https://www.folhamax.com/curiosidades/kelly-key-vira-presidente-de-time-de-futebol-em-angola/500828. Acesso em: 14 de jul. 2025.
GLOBO ESPORTE. Michelle Ramalho é eleita primeira vice-presidente da CBF. Globo Esporte, 10 de abr. 2025. Disponível em: https://ge.globo.com/futebol/noticia/2025/04/10/michelle-ramalho-e-eleita-primeira-vice-presidente-da-cbf.ghtml. Acesso em: 14 de jul. 2025.
GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 26, n. 2, p. 81-102, jan. 2005.
O POVO. Kelly Key revela planos do Kiala FC e parceria com o Flamengo. O POVO, 14 de jul. 2025. Disponível em: https://www.opovo.com.br/agencia/jogada10/2025/07/14/dona-de-clube-em-angola-kelly-key-revela-planos-pro-futuro-e-acordo-com-flamengo.html. Acesso em: 16 de jul. 2025.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995.
SEGATO, R. L. Las estructuras elementales de la violencia. Buenos Aires: Prometeo, 2003.
UOL. Kelly Key reflete sobre ser única mulher a presidir clube em Angola. UOL, 10 de jul. 2025. Disponível em: https://www.uol.com.br/splash/noticias/2025/07/10/kelly-key-reflete-sobre-ser-unica-mulher-a-presidir-time-em-angola.htm. Acesso em: 16 de jul. 2025.
Sobre a autora
Beatriz Mitroff é bacharel em Direito e mestranda em Ciências Sociais, pesquisadora vinculada à Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em direitos da mulher, investiga temas como violência de gênero com enfoque na mulher torcedora de futebol.
As perspectivas presentes nos artigos veiculados no blog Bate-Pronto não necessariamente refletem as posições institucionais do INCT Futebol.
A conquista de mulheres por espaço no território masculinista do futebol é um importante tema de discussão. Se você se interessa por ele, irá gostar também do nosso artigo: O futebol de mulheres no Instagram da Confederação Brasileira de Futebol
Como citar
MITROFF, Beatriz. A presença feminina na liderança do futebol é realmente reconhecida?Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, v. 2, n.27, 2025.
A presença feminina na liderança do futebol é realmente reconhecida? © 2025 by Beatriz Mitroff is licensed under Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International
Ótima reflexão principalmente no cenário brasileiro onde a presença feminina é quase anulada. Ótima escrita!
Ótima reflexão.