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Breve história da criação dos times de futebol LGBTQIAPN+ mineiros

Atualizado: 29 de nov.

Vanrochris Helbert Vieira (UFSC/INCT Futebol)


Equipe do Alianza Minas em 24 de junho de 2024. Fonte: Instagram/Alianza Minas


Desde 2018, tenho conduzido um trabalho etnográfico em torno dos dois primeiros times de futebol LGBTQIAPN+ mineiros, o Bharbixas e o ManoTauros (Vanrochris Vieira, 2023). A partir dessa investigação, foi possível traçar um cenário construído por esses e outros times mineiros entre 2017 e 2024. Uma das atividades de pesquisa desempenhadas foi a realização de entrevistas com membros e ex-membros dos times pesquisados. Além disso, foram feitas observações participantes em peladas, treinos e eventos promovidos por eles. Também foi utilizada, de forma complementar, a etnografia de tela (Carmen Rial, 1995) para colher dados no Instagram e no Facebook. Times de futebol LGBTQIAPN+ são equipes de futebol amadoras compostas por pessoas LGBTQIAPN+. Mas a maioria desses times é composta quase exclusivamente por homens gays. Esses times jogam no formato fut7. Eles existem no Brasil desde 1990, mas só em 2017 houve um boom na criação dessas equipes, além da formação da liga nacional (LiGay) e do campeonato nacional (Champions LiGay). É também em 2017 que surgiram os primeiros times mineiros.


A seguir, irei dividir a criação dos times de futebol LGBTQIAPN+ mineiros em três fases. A primeira, que eu chamo de “surgimento”, se passou entre 2017 e 2019. Nesse período, foram criados os primeiros times de futebol LGBTQIAPN+ no estado. A segunda, à qual eu me refiro como “reconfiguração”, se estendeu de 2020 a 2022, sendo marcada por uma mudança significativa no cenário criado na fase anterior. Por fim, a fase aqui denominada “complexificação”, iniciada em 2023, tem como característica uma grande diversificação de movimentos. Abaixo, está um esquema que apresenta a criação dos times identificados por esta pesquisa, indicando movimentos de cisão e fusão que deram origem a parte deles. É interessante observar que alguns times, que estão destacados, são compostos apenas por homens trans e pessoas transmasculinas. No entanto, é preciso fazer uma reserva: esses são os times cuja existência foi possível identificar no desenvolvimento atual da pesquisa. Às vezes, novas equipes surgem de forma isolada, sem relação direta com outras já identificadas, o que as torna difíceis de detectar. No quadro abaixo, por exemplo, há equipes que só foram descobertas por esta pesquisa cerca de um ano após a sua fundação. Por isso, é possível que o quadro abaixo não represente a totalidade dos times já existentes no estado.


Criação dos times LGBTQIAPN+ de Minas Gerais


Fonte: produzido pelo autor


Fase 1: Surgimento (2017-2019)


O primeiro time de futebol LGBTQIAPN+ fundado em Belo Horizonte foi o Bharbixas, em 2017. No entanto, logo no início da vida da equipe, uma tensão entre um grupo de jogadores e o restante do time marcava a sua dinâmica, sendo possível identificar dois grupos muito distintos. Um deles parecia estar focado apenas no futebol, enquanto o outro pensava também no impacto social desse movimento. Logo depois da fundação do time, a LiGay organizou a primeira edição do Champions LiGay, e o Bharbixas foi convidado para participar. Mesmo com as desavenças, esses dois grupos que compunham o time foram competir juntos, e o Bharbixas voltou para Minas Gerais com a taça de campeão.


A fundação do ManoTauros aconteceu logo depois dessa competição. Um dos motivos apontados para a cisão entre os dois times foi uma tensão entre inclusão e competitividade. O Bharbixas defendia que o time deveria incluir todos os interessados, independentemente de suas capacidades técnicas. Já o ManoTauros visava um alto rendimento. Além disso, para um dos fundadores do ManoTauros, o Bharbixas não tinha o futebol como seu principal foco. Na sua perspectiva, os membros do Bharbixas viam esse movimento como uma festa. De fato, Luiza Anjos e José Silva Júnior (2018) corroboram que, desde a formação do Bharbixas, muitas pessoas se agregaram à equipe pela socialização, e não pelo futebol. Elas iam às peladas e aos jogos pela música que era tocada durante as partidas, com a intenção de dançar e interagir umas com as outras.


No entanto, além dessas questões, a afeminação dos demais jogadores do Bharbixas também teria sido um fator para que os membros fundadores do ManoTauros saíssem do time. Um dos fundadores do ManoTauros confirmou que eles achavam a manifestação de gênero dos demais membros do Bharbixas “caricatural” e se preocuparam em criar o ManoTauros como uma equipe que expressasse masculinidade, a partir de elementos como o nome e o mascote do time, que é o Minotauro. Tudo isso gerou um contexto de rivalidade entre o Bharbixas e o ManoTauros. Em 2018, o Bharbixas comemorou seu aniversário de um ano no Mineirão, sendo o primeiro time LGBTQIAPN+ brasileiro a jogar em um estádio que foi sede da Copa do Mundo (Vanrochris Vieira, 2021). O time jogou contra uma “seleção” de jogadores convidados vindos de outros times do país. Após o jogo, houve também uma festa no estádio. Também em 2018, o Bharbixas participou pela primeira vez de um campeonato convencional (com times que não são LGBTQIAPN+).


Desde 2018, novos times foram sendo criados na cidade, trazendo outros contornos para o cenário dicotômico que opunha apenas esses dois grandes rivais. Nesse ano, foi criado o Felinos, em Belo Horizonte. No ano seguinte, uma cisão nesse time deu origem ao Predadores. Esses dois também passaram a ter uma nova rivalidade entre si, motivada, mais uma vez, por uma cisão. Em 2018, também foi criado o primeiro time do interior de Minas Gerais, o Alcateia, em Manhuaçu.


Em 2019, a 5ª edição do Champions LiGay ocorreu em Belo Horizonte, sendo organizada pelo Bharbixas. A edição contou com 25 times brasileiros. Bharbixas, ManoTauros e Predadores também competiram com equipes femininas em uma chave paralela. Vários times LGBTQIAPN+ possuem ou já possuíram equipes femininas, mas o levantamento completo sobre esse tema não foi realizado nesta pesquisa. Foi possível identificar que o Bharbixas criou sua equipe feminina em 2018. Também foi observado que as peladas recreativas dos times contam eventualmente com presença feminina. O Bharbixas foi pioneiro na presença de mulheres no Champions LiGay ao contar com uma jogadora trans na chave principal da LiGay desde a 3ª edição do evento, em 2018. Posteriormente, Felinos e Alianza Minas também estiveram entre os poucos times a realizar esse movimento. A presença feminina nos times LGBTQIAPN+ é um tema que demanda mais investigações. Na edição do Champions LiGay ocorrida em Belo Horizonte, houve problemas significativos na estrutura do evento, como destacado por Wagner Camargo (2021), cuja responsabilidade foi atribuída à organização do Bharbixas.


Fase 2: Reconfiguração (2020-2022)


Mesmo com a saída dos membros fundadores do ManoTauros, persistiu no Bharbixas uma divisão interna entre os membros que queriam jogar recreativamente e os que desejavam jogar competitivamente. Durante a pandemia, a direção do Bharbixas proibiu a realização de quaisquer atividades até que houvesse a vacinação dos membros do time. Essa proibição foi o estopim para que esses dois grupos se separassem, dando origem à segunda cisão do Bharbixas, com a fundação do Inconfidentes Pride, em 2021. Mas o fundador desse time defendeu, em entrevista, que a criação dele se deu em um momento em que as restrições da pandemia já estavam flexibilizadas em Belo Horizonte.


Por outro lado, o ManoTauros também já vinha se desestabilizando devido a conflitos internos, motivo pelo qual um de seus fundadores havia saído do time. Com a criação do Inconfidentes Pride, ele se juntou a essa equipe, levando consigo alguns membros do ManoTauros, já que esse time também estava impondo restrições para a atividade dos jogadores durante a pandemia. Com isso, a pandemia deu um golpe quase fatal nos dois maiores times do estado. A crise do ManoTauros fez com que seu time competitivo ficasse muito enfraquecido. Já o Bharbixas ficou completamente sem time competitivo, devido ao desfalque provocado pela criação do Inconfidentes Pride. Assim, a relação de forças entre os times do estado mudou totalmente, e o Felinos e o Inconfidentes Pride tornaram-se as novas potências do futebol LGBTQIAPN+ mineiro. 


Porém, não apenas a escala de forças dos times mudou, mas também a relação existente entre eles, gerando um cenário colaborativo entre as equipes de Belo Horizonte, com um papel central do ManoTauros e uma participação muito pequena do Bharbixas. Em 2020, houve o primeiro campeonato específico para os times mineiros, a Copa BH. No mesmo ano, passou a existir o Campeonato Mineiro de times LGBTQIAPN+. Em 2021, o Inconfidentes Pride, o Felinos, o Predadores e o ManoTauros criaram um projeto chamado Belory Hills Futebol & Resenha para participar de uma competição como uma única equipe, em São Paulo. Em 2022, uma colaboração entre essas quatro equipes tornou possível a formação de um supertime competitivo para disputar um concorrido “campeonato hétero” (forma como os jogadores entrevistados chamam os campeonatos convencionais) pelo ManoTauros. A iniciativa deu muito certo e o time saiu vitorioso, marcando a culminância de um processo de união entre essas equipes.


Para além desses campeonatos, Predadores e ManoTauros haviam estabelecido uma relação de mútua colaboração: membros do ManoTauros passaram a reforçar o Predadores nas disputas de jogos LGBTQIAPN+, enquanto o Predadores oferecia jogadores para o ManoTauros disputar “jogos hétero”. Assim, a atuação das duas equipes se tornou segmentada e complementar. O Bharbixas, por sua vez, também estabeleceu uma parceria com o Felinos, de forma que os membros do primeiro time passaram a competir nos campeonatos pela equipe do segundo.


Com o novo cenário estabelecido, a rivalidade que existia entre o Bharbixas e o ManoTauros se arrefeceu. Primeiro porque o Bharbixas já não tinha mais time competitivo, permanecendo apenas com as atividades recreativas. Segundo porque o perfil dicotômico entre os dois times havia se dissipado, já que a nova direção do ManoTauros passou a adotar uma filosofia muito diferente da que o time tinha no início, prezando mais pela inclusão do que pela competitividade, assim como o Bharbixas. O cenário construído por esta segunda fase se completou com a criação do Elite, o primeiro time transmasculino de Minas Gerais, em 2022.


Fase 3: Complexificação (2023-2024)


Em 2023, o futebol LGBTQIAPN+ chegou a duas outras cidades do interior de Minas Gerais. Nesse ano, o Rajadão surgiu em São João del-Rei. Já em Juiz de Fora, foi fundado o Transtornados, o primeiro time transmasculino fora da capital. No ano seguinte, esse time passou por uma cisão, dando origem ao Alcateia – time transmasculino com o mesmo nome de outro time LGBTQIAPN+ já existente em Manhuaçu.


Em 2024, mais uma vez, o futebol LGBTQIAPN+ mineiro passou por uma grande reconfiguração de forças quando o Felinos e o Inconfidentes Pride, os dois times com maior desempenho nas competições nacionais, resolveram se unir para formam um único time capaz de bater de frente com as equipes do Rio de Janeiro e de São Paulo. Junto com o Alcateia, de Manhuaçu, eles criaram o Alianza Minas. Com isso, o Inconfidentes Pride extinguiu completamente suas atividades, enquanto o Felinos e o Alcateia as pausaram por tempo indeterminado. Devido a esse movimento, a parceira entre o Bharbixas e o Felinos também se extinguiu. Também a relação de complementariedade entre o ManoTauros e o Predadores havia sido finalizada, em 2023, devido a conflitos internos entre os dois times.


Também em 2023, o Elite havia organizado um torneio chamado Copa Inclusão, contando com times LGBTQIAPN+, femininos e masculinos convencionais. Mas, em 2024, essa equipe passou por uma mudança muito significativa, deixando de ser formada exclusivamente por homens trans. Segundo o presidente do Elite, um grande número de adolescentes de áreas carentes próximas ao local em que o time treinava pediu para começar a participar dos treinos. Com isso, o Elite acabou se abrindo para a participação também de pessoas que não são LGBTQIAPN+.


Segue, abaixo, um esquema geral das relações entre os times LGBTQIAPN+ mineiros, mostrando os movimentos de cisões, fusões, parcerias, extinções, pausas e aberturas.


Esquema geral dos times LGBTQIAPN+ de Minas Gerais


Fonte: produzido pelo autor


Várias pequenas observações dão sinais da complexificação do cenário desses times nesta terceira fase. Nela, pela primeira vez, podemos identificar:


  • Um time formado pela fusão de outros times (Alianza Minas)

  • Um time extinto (Inconfidentes Pride)

  • Um time transmasculino criado no interior (Transtornados)

  • Um time transmasculino formado por cisão (Alcateia de Juiz de Fora)

  • Um time do interior formado por cisão (Alcateia de Juiz de Fora)

  • Times com atividades pausadas (Alcateia de Manhuaçu e Felinos)

  • Times ativos em mais de uma cidade do interior (São João del-Rei e Juiz de Fora)

  • Mais de um time na mesma cidade do interior (Juiz de Fora)

  • Mais de um time com o mesmo nome (Alcateia de Manhuaçu e Alcateia de Juiz de Fora)

  • Um time deixando de ser composto exclusivamente por pessoas LGBTQIAPN+ (Elite)


O panorama observado demonstra que o futebol LGBTQIAPN+ tem se construído de forma dinâmica e instável, com cisões, reagrupamentos e modificações internas que alteram o perfil dos times e a sua relevância ou não no cenário geral das equipes. Em apenas oito anos, pelo menos onze times foram criados em Minas Gerais, em quatro cidades diferentes. Desse total, quatro foram formados por cisões e um por meio da fusão de times que já existiam anteriormente. Isso mostra que esse é um fenômeno complexo e bastante dinâmico. No entanto, cabe observar se essa é uma característica que marca apenas o momento inicial de formação dessas equipes ou se esse padrão se estenderá, se consolidando como uma forma típica de organização desse movimento.


Observação: Após a publicação deste texto, fomos atualizados de que, depois da cisão com o Alcateia, o Transtornados passou por uma reformulação e se tornou aberto a quaisquer pessoas trans, incluindo também mulheres trans, travestis e não-bináries.


Referências:

ANJOS, Luiza Aguiar dos; SILVA JÚNIOR, José Aelson da. Recusando armários: histórias de homens homossexuais no futebol brasileiro. Mosaico, Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, p. 214-231, 2018.


CAMARGO, Wagner Xavier de. Gêneros em disputa: a LiGay Nacional de Futebol Society e o espaço de acontecimento. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 2, p. 1-13, mai./ago. 2021.


RIAL, Carmen Silvia de Moraes. Antropologia e mídia: breve panorama das Teorias da Comunicação. Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, n. 1, p. 4-64, jan./dez. 1995.


VIEIRA, Vanrochris Helbert. Aniversário do Bharbixas no Mineirão: experiência, futebol gay, mercado e direito à cidade. Sociabilidades Urbanas, João Pessoa, v. 5, n. 13, p. 125-136, mar. 2021. Disponível em: <https://ludopedio.org.br/biblioteca/aniversario-do-bharbixas-no-mineirao-experiencia-futebol-gay-mercado-e-direito-a-cidade/>. Acesso em: 29 de mai. 2023.


VIEIRA, Vanrochris Helbert. O futebol das bichas e dos manos: manifestação de gênero e reflexividade na formação de times de futebol LGBTQIAPN+ de Belo Horizonte. 2023. 384 p. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2023.


Sobre o autor:

Vanrochris Helbert Vieira é doutor em Ciências Humanas, área de concentração Estudos de Gênero, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É bolsista de pós-doutorado júnior no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Estudos do Futebol Brasileiro (INCT Futebol) e editor do blog Bate-Pronto.


Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pelo autor no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis.


Como citar:

VIEIRA, Vanrochris. Breve história da criação dos times de futebol LGBTQIAPN+ mineiros. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.31, 2024.




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