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Dérbi multissituado em três atos

Gabriel M. M. Bocchi (UFSCar)

Mariane da Silva Pisani (UFPI/INCT Futebol)



No texto a seguir, Mariane e Gabriel relatam as emoções de acompanhar a final do Campeonato Paulista de 2025. Como antropólogos e corinthianos apaixonados, eles apresentam a vivência de torcida em diferentes espaços.


Comemoração dos torcedores no Bar do Biu (16/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi
Comemoração dos torcedores no Bar do Biu (16/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi

Antes de apresentar os relatos propriamente ditos, é necessário fazer algumas, ainda que breves, explicações. O nosso objetivo é que vocês, leitores(as), sejam situados(as) contextualmente nas cenas que serão narradas a seguir.


No ano de 2025, após cinco anos de espera, Corinthians e Palmeiras se encontraram novamente em uma final do Campeonato Paulista. Desde o ano de 2016, vigora, no Estado de São Paulo, a medida judicial da “torcida única”, que faz com que os jogos aconteçam sem a presença das torcidas visitantes. Assim, a primeira partida, realizada em 16 de março, aconteceu no Allianz Parque, com mando do Palmeiras e sem a presença dos(as) torcedores(as) do Corinthians. Já a segunda partida, ocorrida em 27 de março, aconteceu na Neo Química Arena, com mando do Corinthians e apenas para os(as) alvinegros(as).


O texto a seguir está dividido em três breves seções e se conecta a outro texto, postado no Ludopédio, “O dérbi e seus torceres: a final por um corinthiano e uma palmeirense”. A primeira e a segunda seções deste texto narram as experiências corinthianas vividas separadamente pelos autores no dia 16 de março em dois espaços distintos: no Bar do Biu, localizado no bairro de Pinheiros, cidade de São Paulo, Brasil; e no Gambino Bar, localizado no bairro Balvanera, cidade de Buenos Aires, Argentina.


A terceira e última seção narra a experiência compartilhada pelos autores no dia 27 de março, quando assistiram juntos à segunda partida da final na Neo Química Arena. A partir deste exercício multissituado, buscamos valorizar os diferentes lugares e formas de torcer que um mesmo jogo pode proporcionar à experiência torcedora. Da mesma forma, os textos das três seções apresentam diferentes estilos narrativos, uma vez que refletem as subjetividades dos autores que se engajaram na experiência descritiva das partidas do Dérbi.


Sobre sentir-se em casa, mas saber não estar

(por Gabriel M. M. Bocchi)


O Bar do Biu, localizado no bairro de Pinheiros, em São Paulo, configura-se como relevante ponto de encontro para corinthianos da região. Embora o primeiro jogo da final do Paulistão tenha sido disputado na cidade de casa dos corinthianos, ele era “fora de casa” (em razão da “torcida única”). Assim, desde as três da tarde daquele domingo, o bar começou a ser ocupado por torcedores.


O local divide-se em quatro ambientes. A calçada é o marco zero. Depois dele, há o primeiro salão, com balcão e bar, geladeiras e televisão. O segundo tem mesas, cadeiras e televisão. No terceiro, há mesas, cadeiras e geladeiras. Às quatro e meia da tarde, quando cheguei, corpos com camisas do Corinthians ocupavam parcialmente o marco zero e o primeiro salão, enquanto, no segundo e no terceiro, predominavam pessoas sem vestes futebolísticas desfrutando das refeições que dão fama extra futebol ao restaurante, como feijoada e baião de dois. 


Conforme a tarde caía – embora, para os torcedores presentes lá desde cedo, “o tempo não passa, não chega a hora!” – permanecia no bar apenas uma grande maioria de corpos com roupas majoritariamente pretas e brancas. Destaca-se: não foram poucos os que chegaram com uma blusa fechada ou trocaram uma camiseta “normal” por uma do Corinthians: é tido como perigoso transitar pela cidade com a camisa do time não mandante em dia de clássico! Outro perigo compartilhado para aquelas tarde e noite: o transporte público! “Eu sou chato, falo pra galera: dia que a gente não é mandante, não pode pegar transporte público! Mesmo sem camisa, a gente entrega!”. 


O jogo, enfim, teve início. “Apaga a luz!”, gritavam alguns torcedores no primeiro salão e na calçada, a fim de evitar o reflexo de lâmpadas brancas sobre a tela do televisor. Se não é incomum que estádios tenham “pontos cegos” – sobretudo nos setores destinados aos “visitantes” – ali, aquelas lâmpadas (fundamentais para as cerca de doze pessoas que trabalhavam no bar, algumas com camisas do Corinthians) também o eram. 


Ainda em relação aos consumos alicerçados no torcer, era visível que a concentração de torcedores em pé na calçada se dava pois fumavam enquanto se esticavam para enxergar a televisão e o jogo. No intervalo, um desses torcedores comentou: “Alguém conseguiu ver bem o jogo para fazer algum comentário do time?”. 


No primeiro salão, apertados, cantando e performando, algumas dezenas de corpos virados na direção da televisão. Ainda neste, eram tocados três instrumentos de bateria de samba, um deles por Rogério, um dos donos do bar. Tanto na calçada quanto no salão de entrada, eram poucos os que não tinham em mãos um copo com cerveja e que não cantavam, pulavam, balançavam braços, etc. 


O terceiro salão (com quadros referentes ao Corinthians) estava vazio de pessoas: sem televisor. Já o segundo salão era ocupado por pessoas sentadas em cadeiras. As mesas eram apoios para copos, garrafas e pratos simples. Silencioso, era possível ouvir a narração da transmissão televisiva, apesar do ruído musical vindo do outro salão.


O Bar do Biu atende a diferentes expectativas e formas de torcer. Na calçada e no salão de entrada, assiste-se ao jogo em pé, com bateria e músicas de arquibancada. No segundo salão, assiste-se ao jogo sentado em cadeiras. Como não pensar na própria setorização e diversificação nas formas de ação-torcer nos estádios? No intervalo, comentei essa leitura com Rogério, que revelou não ser inédita: “Na época do Pacaembu, a gente falava que aqui [primeiro salão] era arquibancada amarela e ali [segundo salão] a cadeira laranja ou a numerada”.


Diferentes ambientes do Bar do Biu (16/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi
Diferentes ambientes do Bar do Biu (16/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi

Foram dois banhos de cerveja naquela noite: o primeiro quando Yuri Alberto marcou o gol corinthiano, o segundo quando a vitória se confirmou. Rapidamente, sinalizadores luminosos foram acesos, instrumentos de bateria levados à rua. O trânsito veicular na Rua Cardeal Arcoverde interrompido por exaltados corpos trajados em alvinegro: cantar, dançar, abraçar, filmar. Cerca de dez minutos de vivaz intensidade: “Seremos! Seremos!”, gritava um rapaz abraçado a outros quatro, entre a calçada e a faixa por onde passam os ônibus em alta velocidade. Seremos campeões!


Se, para a chegada, foram necessárias ações de prevenção, elas também começaram a circular na dispersão: nas horas anteriores e posteriores ao jogo, os corinthianos eram visitantes e adversários na própria cidade. Uma segunda onda de lentidão no trânsito veicular da Cardeal Arcoverde se formou: uma fila de carros com motoristas acionados por meio de aplicativos.  


Atrás de mim, ouvi a voz de Rogério distribuindo orientações: “Pessoal, vamos embora que já já eles vão descer!”. Os mandantes no estádio, dentro de algumas dezenas de minutos, passariam por ali em carros, motos e ônibus seguindo de volta para suas casas (literais), nas zonas Oeste e Sul. Observei o bar já esvaziado, similar à cena do ato de minha chegada, no meio da tarde. Fiquei atento para que Miguel, motorista acionado por mim às oito e quarenta e três da noite, não se complicasse bloqueando o trânsito na rua por muito tempo.


Domingo de Dérbi em Buenos Aires

(por Mariane da Silva Pisani)


16 de março de 2025. Em primeiro lugar: dia de Corinthians. Em segundo lugar: primeiro jogo da final do Paulistão 2025, com Dérbi e mando de campo do Palmeiras. Saí de casa às 17h40 e fui caminhando até o Gambino Bar, a aproximadamente 20 quarteirões de distância. O jogo começava às 18h30, e cheguei faltando 15 minutos para o início da partida.


O Gambino Bar localiza-se no bairro Balvanera, cidade de Buenos Aires, Argentina. Ele tem como temática o Brasil, assim, não é raro encontrar brasileiros sentados às mesas de toalhas verdes e amarelas, comendo feijoada e tomando caipirinha, enquanto acompanham as partidas de seus times. Essas partidas são transmitidas ao público em dois aparelhos: um dentro do bar e outro na calçada.


Ao chegar no estabelecimento, notei que estava lotado. As finais dos campeonatos estaduais por todo o Brasil fizeram com que os torcedores – brasileiros migrantes na Argentina – buscassem o espaço para acompanhar seus times do coração.


Do lado de fora, a maior parte das mesas era ocupada por flamenguistas e palmeirenses. Imediatamente, falei com Felipe, o garçom que já me conhece:

Felipe, por favor, só me arruma uma cadeira para sentar? Não preciso de uma mesa.

Prontamente ele me alcançou uma. Pedi permissão para um senhor flamenguista que estava sentado sozinho:

Posso colocar minha cadeira aqui no cantinho da sua mesa?

Com sua anuência, me posicionei e, daquele espaço, assisti à partida. Novamente, chamei Felipe:

Desce um litrão bem gelado, por favor?

As cervejas no Gambino Bar vêm com uma capa de proteção térmica decorada com os escudos de alguns times brasileiros. Recebi minha cerveja em uma capa com o escudo do Palmeiras. Rindo, virei-me para o garçom e disse:

Ô, Felipe, sem condições isso aqui, né? Dá até azar um negócio desses! Troca pra mim, por favor!

Ele, também rindo, pegou a garrafa e trocou imediatamente, dizendo:

Ih! Esqueci que você era corinthiana!

Esqueceu mesmo ou quis tirar uma ondinha? Nunca saberei.


Cerveja servida no Gambino Bar (16/03/2025). Foto: Mariane S. Pisani
Cerveja servida no Gambino Bar (16/03/2025). Foto: Mariane S. Pisani

Jogo em tela. Transcorre o primeiro tempo.


De um lado, o Palmeiras, mais ofensivo. De outro, Hugo Souza atento e sempre bem posicionado. Matheuzinho defende um chute alviverde quase em cima da linha do gol! Meu coração vai à boca. Mais ações ofensivas do Palmeiras, nenhuma com efeito. Minhas mãos suam. Fim do primeiro tempo. Uma amiga argentina chega para acompanhar o jogo comigo.

Felipe, por favor, outro litrão e mais um copo.

Inicia-se o segundo tempo. Dez minutos transcorridos. Assistência de Memphis e gol de Yuri Alberto. Gritos nas mesas vizinhas. Pela primeira vez, localizo outra torcedora corinthiana. Ela está posicionada atrás de mim. Nunca a vi na vida. Prontamente, me levanto e lhe dou um abraço. Sorrindo, ela me diz:

Ficou sabendo? Penduraram uma cabeça de porco em um poste perto do Allianz.

Rimos juntas. Abraço minha amiga argentina e digo eufórica:

Vai Corinthians, Verô!

Na televisão, nosso camisa 9, Yuri Alberto, manda beijinhos para a torcida rival. Silêncio no estádio palmeirense. O jogo continua. Mais algumas ofensivas alviverdes, sem nenhum efeito. Fim do Dérbi: Corinthians 1 x 0 Palmeiras.


Jogada inesquecível? Canetada do Carillo.


Na mesa ao lado, vejo que um torcedor acompanha, na tela do celular, a final do Campeonato Baiano. Outro clássico: Bahia vs. Vitória. Busco contato visual, aponto para o celular e pergunto:

E aí?

Ele responde:

Deu Bahia.

Ele faz um sinal de comemoração, e eu retribuo. Felizmente, naquela noite, fomos ambos vencedores em nossos respectivos clássicos.


Neo Química Arena | Arena Corinthians 


Mariane: 27 de março de 2025, dia de Corinthians. Desde a semana anterior, penso nesse dia com bastante hiperfoco. Não consegui dormir na noite anterior. Ainda que meu voo saísse somente às onze da manhã, às oito eu já me encontrava no saguão do Aeroporto Aeroparque Regional Jorge Newbery, Buenos Aires, Argentina. Finalmente, voltaria ao Brasil depois de um ano vivendo em terras portenhas por conta do pós-doutorado. Mas a verdade é que aquele momento não se tratava, em nada, de finalização de um ciclo de estudo e trabalho. Eu estava voltando ao Brasil para ver o Corinthians jogar a final do Campeonato Paulista. Um pouco entorpecida pela falta de sono, não acreditava plenamente que, em poucas horas, estaria dentro da Neo Química Arena.


Gabriel: Acordei às cinco da manhã e, como de costume às quintas-feiras, daria aulas de Sociologia das 7h às 17h. Como foi difícil a concentração para discutir com as turmas de Ensino Médio o “contrato social” para Rousseau! A chegada na escola, a entrada nas salas de aula, as pausas para cafés com colegas. Todos os momentos foram recobertos por diálogos que lembravam que “é hoje!”. Um colega, ao me ver saindo da escola com uma camisa alvinegra, afirmou: “Você vai no jogo! Será um dos quarenta e oito mil privilegiados!”.


Mariane: Pousei no Brasil, em São Paulo, às 14h. Passei correndo pela alfândega e imigração. Precisava deixar as malas – onde estava toda minha mudança – guardadas no maleiro do aeroporto e pegar um Uber até a Bela Cintra, onde ficaria hospedada. Depois de 1 hora de trânsito, cheguei ao hotel às 16h, onde pude finalmente tomar um banho. A ansiedade que estava comigo desde a noite anterior, que me impediu de dormir, não passava. Peguei o telefone e enviei uma mensagem para meu amigo Felipe agradecendo o ingresso. Infelizmente, ele precisaria dar aulas naquela noite e não poderia assistir a partida no estádio. Enquanto escrevia a mensagem, comia, desinteressada, algumas batatinhas fritas que recebi no voo. Entre um gole e outro de energético, pensava no jogo. Às 17h30, me vesti e saí do hotel. Às 18h15, encontrei Gabriel na Estação República. Dali partimos. Destino: Corinthians-Itaquera.


Destino: Corinthians-Itaquera (27/03/2025). Foto: Mariane S. Pisani
Destino: Corinthians-Itaquera (27/03/2025). Foto: Mariane S. Pisani

Gabriel: No final daquela tarde, atravessamos a cidade de São Paulo. Mariane da região da República até Itaquera, e eu da região de Pinheiros até o mesmo destino. Fomos juntos parte do caminho. O clima na cidade direcionava para o jogo. Pessoas com camisas do Corinthians caminhando pela Avenida Faria Lima, telões no metrô divulgavam a partida como meio para ação publicitária de um site de apostas, informes sonoros indicavam que haveria horário expandido no funcionamento do metrô, a fim de atender aqueles que poderiam sair da Arena Corinthians apenas após a meia-noite.


Mariane: A viagem até a Neo Química foi tranquila, tanto quanto possível. Pessoas entravam e saíam dos vagões. Muitas pessoas com camisas do Corinthians circulavam pelo espaço. Um jovem de uns 20 anos puxou assunto conosco, comentando sobre o jogo. Eu estava tão ansiosa que não dei atenção. Enquanto Gabriel conversava com ele, eu enviava uma mensagem para um amigo que estava em Artur Alvim. Tão logo chegamos à estação, descemos para encontrá-lo. Uma das primeiras coisas que vi, ao sairmos da estação, foi uma cabeça de porco pendurada em uma árvore. Não contive o riso. “Cadê o Roberto, hein? Ele já te mandou a localização?”, perguntei. Saímos em busca dele no meio da multidão.


Gabriel: Chegamos na região de Artur Alvim, próxima ao estádio, por volta das 19h. Torcedores e torcedoras já se concentravam antes da partida entre as dezenas de bares da região, como é comum. Estávamos com fome, mas, conforme ocorriam encontros com outros(as) torcedores(as) e éramos tragados por aglomerados festivos – com tambores, rojões, sinalizadores e até um porco assando no rolete –, nos esquecemos daquela necessidade fisiológica. Uma caminhada que normalmente consome dez minutos requereu mais de trinta: passamos por fervos, encontramos pessoas torcedoras conhecidas de longa data, compartilhamos ansiedades e desejos recobertos de certeza para aquela noite de jogo do Corinthians. “Hoje são quarenta e oito mil dentro e quarenta e oito mil fora!”, comentou um senhor com camisa dos Gaviões da Fiel. A noite já se mostrava diferente.


Clima antes da final (27/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi
Clima antes da final (27/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi

Mariane: Era uma verdadeira profusão de sons, barulhos, cheiros, cores e pessoas. Sinalizadores enchiam o ar de fumaça e luz vermelha. Rojões rasgavam o ar com fortes estampidos. Vozes, cantos, gritos em uníssono pelo Corinthians. Pouco a pouco, a ansiedade dava passagem à euforia. Mesmo em meio a um mar de gente, foi possível encontrar Roberto e seu irmão. Eles pareciam tão ou mais ansiosos que a gente. Robertinho nos contou que iria assistir ao jogo do lado de fora do estádio, em um telão montado em uma rua lateral. Felizes de nos encontramos todos, abrimos umas cervejas e brindamos ali mesmo.


Gabriel: O jogo tinha seu início marcado para 21h35. Contrariando os movimentos comuns de jogos ordinários – não uma final de Paulistão contra o arquirrival – cerca de uma hora e meia antes do apito inicial, agrupamentos de torcedores(as) corinthianos(as) partiram rumo ao estádio. Na rua do Ponto de Encontro dos Gaviões da Fiel, onde encontramos Roberto e Guilherme, permaneceram aqueles sem ingresso e que, como eles, assistiriam ao jogo dali em um telão. E eram muitos, não só ali, como nas demais ruas ao redor. Nunca havia visto aquela região com tanta gente.


Mariane: Entrar em um estádio para assistir a um jogo já é, por si só, um evento memorável. Se for uma final de campeonato, a emoção se intensifica. Se for um Dérbi, transforma-se no evento de toda uma vida. E se, para isso, alguém precisa percorrer quase 2.300 km, acredito que estamos diante de uma crise aguda de paixão. Era assim que eu me sentia naquele momento: movida pela paixão, movida pelo Corinthians. Para mim, não se tratava apenas de ver um jogo. Se tratava de viver louca e intensamente aquele momento histórico. À medida que caminhava em direção ao estádio, a emoção crescia e as palavras me faltavam. Pensamentos corriam livres: “E se der tudo errado?”, “E se der tudo certo?”, “Só marquem um golzinho só, pelo amor de Deus”, “E se não ganhar?”, “Tem que ganhar, não é possível!”, “É isso! Se o Corinthians ganhar vou tatuar o escudo!”. Essa última foi a promessa feita, comigo mesma, naquela noite.


Gabriel: Dos doze jogos em que a presença de torcedores do Corinthians foi permitida nesse Paulistão, estive presente em oito. Perdi dois jogos no interior e dois em casa. Nos últimos quatro anos, estive em cerca de noventa partidas. Conforme eu me aproximava da arquitetura branca iluminada do estádio, ladeado por milhares de outros(as) torcedores(as) vestidos em preto e branco, sentia que eu estava ali naquela noite para buscar algo que era meu. Apertado entre pessoas em uma fila para verificação de ingressos, na calçada da Avenida Radial Leste, meu pensamento sobre o que sentia veio desta forma, e em itálico: estou indo buscar algo que é meu.


Mariane: Dentro do estádio, buscamos lugares para assistir ao jogo, mas era impossível simplesmente sentar e esperar o jogo começar. O coração batia acelerado, as pernas inquietas, os olhos não paravam de percorrer cada detalhe, as mãos se contorciam sem parar. Eu tentava contar a respiração 4-7-8, ao mesmo tempo em que cantava baixinho um ponto para Ogum: “Jorge sentou praça na cavalaria, e eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia”. Respiração e reza. O som das arquibancadas vibrava no meu peito, como se o meu corpo inteiro ressoasse junto com os cantos da torcida. A imensidão do campo, as luzes, os bandeirões das organizadas tremulando e os gritos que vinham de todos os lados transformavam o espaço. Depois de passar um ano morando na Argentina e aterrissar em Guarulhos às duas da tarde daquele dia, lembro que foi somente naquele momento que pensei: estou em casa. Segurei o choro.


Gabriel: Desde o ano de 2022, frequento mais o estádio do Corinthians do que as casas de minha mãe e meu pai. Naquela noite, estava com a atenção redobrada para as diversas diferenças que podem ser vividas naquele espaço. Aos poucos, tive a sensação de que estava tudo diferente. Novos bares em Artur Alvim, diferente esquema de segurança, orientações para mosaicos e demais condutas torcedoras. Em geral, o estádio fica cheio por volta da metade do primeiro tempo. Faltavam vinte minutos para o apito inicial e já não se via movimentação de entrada de torcedores. De fato, havia elementos que marcavam aquele jogo como uma excepcionalidade em relação aos demais.


Mariane: Foi marcado um pênalti para o Palmeiras! Minha vista fica nebulosa e meus joelhos enfraquecem. Quase caio no chão de tanta angústia. Prendi a respiração. Era o momento em que tudo poderia desabar ou se eternizar. Veiga ajeitou a bola com frieza, mas do outro lado estava Hugo, sereno e calmo. Era como se o peso da decisão não o esmagasse. Ele olhou firme, leu o corpo do batedor e, quando a bola saiu do pé, disparou para o canto direito com precisão. A luva encontrou a bola. Defesa. O grito do estádio veio como uma avalanche. Alguém me deu um esbarrão. Por sorte, consegui segurar meus óculos no ar e, assim, evitar que ele fosse pisoteado. Me virei para a moça que estava do meu lado e, juntas, como se fossemos velhas conhecidas, nos abraçamos e gritamos.


Gabriel: Em geral, acompanho os jogos realizando anotações em um aplicativo de texto em meu aparelho celular. É um hábito etnográfico que me leva, por vezes, a não ver – mas sentir, por outras vias – lances relevantes das partidas e também ser inquirido por colegas e amigos. Foi impossível fazê-lo em meio à catarse de emoções do jogo. Se tudo parecia diferente, os meus registros não fugiram a essa máxima. Como pensar em anotações estruturadas com a pressão alviverde que durou quase meio primeiro tempo? Como pensar nos temas, tópicos e subtópicos da tese in fieri com a bola na trave de Garro? O pênalti defendido por Hugo Souza? A expulsão de Félix Torres? Gravei áudios descrevendo sentimentos e percepções, é verdade, mas quem venceu o lugar em meu corpo naquela noite foi o torcedor do Corinthians que se forma há mais de trinta anos.


Mariane: Quase final de segundo tempo. Sinalizadores pipocavam nas arquibancadas e bombas explodiam dentro do campo. Em questão de minutos, uma nuvem espessa de fumaça cobriu o campo e já não se podia mais ver o gramado. Não era só o campo que desaparecia dos nossos olhos: era a própria lógica do jogo que se diluía, substituída pela paixão e loucura torcedoras. Nitrato de potássio. Pólvora. Do que será que são feitos sinalizadores e bombas? De emoções em estado bruto. De emoções em combustão. A torcida, longe de ser mera espectadora, assumiu papel central, interferindo diretamente no ritmo da partida. A massa alvinegra fez do caos um gesto tático: o jogo precisava acabar! Éramos um coletivo que empurrava o time e os jogadores até o limite, desafiando o controle do juiz e afirmando que o futebol, no fundo, pertence a quem o vive louca e intensamente de corpo inteiro. 


Gabriel: Fazia muito tempo que eu não chorava daquele jeito. Lutava contra meus ímpetos afetivos-torcedores com o que ocorria naquele estabelecimento comercial-desportivo. Buscava concatenar o mar de sinalizadores acesos aos 45 minutos do segundo tempo com a bibliografia recente de estudos sobre futebol brasileiro. Aquele era um momento de outras entregas. “Acenderam cedo demais! Ele [o árbitro] vai dar quinze minutos de acréscimos!”, repeti isso algumas vezes, desesperado! A nuvem de fumaça dos fogos de artifício nos impedia de ver o campo e os lances do jogo, e até mesmo o telão que transmitia as filmagens ao vivo. Perdemos a noção do tempo, tão necessária para o regramento esportivo. Não era possível ver ou ouvir os acréscimos ao tempo de jogo dados pelo juiz. “Acho que quando deu 45 minutos, eram onze e meia da noite”, comentou um rapaz ao meu lado. É comum ver torcedores acionando cronômetros em celulares no instante em que o relógio do telão marca 45 minutos e é congelado. É comum em jogos ordinários. Ali, contudo, em meio à tensão da final, entre jogadores conflitando no gramado, com Memphis em cima da bola, não havia ninguém ao nosso redor utilizando este dispositivo de controle do tempo. Não houve percepção de tempo para marcar o tempo?


A emoção no estádio (27/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi
A emoção no estádio (27/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi

Mariane: Que aflição! Foram 20 minutos de prorrogação? Não sei, ninguém ao lado sabe. Ouço o apito final. É fim de jogo. Uma onda de alívio percorre meu corpo, e, mais uma vez, os meus joelhos cedem. Quero me atirar ao chão e agradecer ao divino. Olho para o lado, Gabriel está chorando. Passo as mãos no rosto e percebo que eu mesma estou chorando. Não vi o momento em que as lágrimas começaram a cair. Tomo um gole de água e tento recuperar algum fôlego. Os sinalizadores e os sons da torcida ainda ecoavam no corpo, como se o jogo continuasse dentro de mim. Os torcedores não fazem o movimento de sair do estádio. Continuamos todos ali, cantando o hino do Corinthians, celebrando nossos jogadores, abraçando alegremente estranhos como se fossem velhos conhecidos. Acompanhamos a premiação e, na saída do jogo, reencontramos Roberto mais uma vez. Agora, acompanhado de outra amiga, Pâmela. Ainda que a Polícia Militar tenha tentado nos dispersar com sprays de pimenta, celebramos o título até às seis da manhã do dia seguinte com outros(as) torcedores(as) que também insistiram em ficar nos arredores do estádio. Durante a madrugada, entre risos, piadas e comemorações, lembro de dizer em determinado momento –

 talvez tenha sido um grito, tamanho estado de euforia: “Esse é o dia mais feliz da minha vida!”. E, de fato, foi. Tudo absolutamente valeu a pena. 


Gabriel: Por volta da meia-noite, o título, que era dado como certo desde as 20h30 de 16 de março – “Seremos! Seremos!” – se confirmou. A felicidade plena pôde ser saboreada, ainda que como alívio. Não vi ninguém correndo para sair do estádio, como é comum ao término de jogos noturnos. Erguer a taça fazia parte do jogo. Sair com uma calma esfuziante, cantando, abraçando amizades e parentes, declarando que “amanhã é feriado!” também. A madrugada avançava em Artur Alvim. Uma e meia, duas, três, quatro da manhã. Caminhões servindo como plataforma para aglomerações de torcedores, bares lotados, caixas térmicas de vendedores ambulantes sendo esvaziadas. Todos os encontros com pessoas torcedoras que conheço há cerca de uma década, ou alguns meses, foram centralizados em abraços firmes e frases na primeira pessoa do plural, como: “Somos campeões!”. Não foi o Corinthians, fomos nós. “O Corinthians somos nós!”, é frase recorrente. Às quatro e meia, o metrô reabriu, e foi visível um pequeno êxodo. Pequeno, pois o volume de pessoas em celebração ainda bloqueava a Rua Doutor Luís Ayres e queimava sinalizadores, pareciam infinitos! Quando partimos rumo à região central da cidade, às seis da manhã, o céu já estava em tom rosa azulado por conta do nascer do sol. O metrô, cheio de trabalhadoras(es), foi palco de bate-boca entre quem queria silêncio para cochilar e dois madrugadores festivos corinthianos. Mudamos de vagão. “Será que a gente acha uma feijoada por essas horas?”.  


Céu no amanhecer do dia seguinte (28/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi
Céu no amanhecer do dia seguinte (28/03/2025). Foto: Gabriel M. M. Bocchi

Mariane: Quando cheguei no hotel, por volta das nove da manhã, dois últimos pensamentos me atravessaram enquanto encostava a cabeça no travesseiro: “Bendita seja a hora que entrei no avião em Buenos Aires para assistir a essa final” e “Preciso providenciar a tatuagem do escudo do Corinthians”. Depois de mais de 30 horas acordada, finalmente fechei os olhos e, sorrindo, dormi o sono dos campeões.


Sobre o autor e a autora:


Gabriel Moreira Monteiro Bocchi é formado em Ciências Sociais (licenciatura e bacharelado, UNESP), mestre em Antropologia Social (USP) e doutorando em Antropologia Social (UFSCar). Desenvolve pesquisas nas subáreas da Antropologia Urbana e Antropologia das práticas esportivas. Atua como professor de Ciências Humanas na educação básica e como artista visual multilinguagens.


Mariane da Silva Pisani é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente, é professora adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI), onde coordena o Grupo de Pesquisa em Antropologia e Interseccionalidades (ANTROPOS). É vice-coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Estudos do Futebol Brasileiro (INCT Futebol).


A experiência de torcer é um fenômeno que só a paixão por um time é capaz de explicar. Se você se interessa por esse tema, poderá gostar também do nosso texto: Para os campeões da América, Ana e Dudu.


Como citar: BOCCHI, Gabriel M. M.; PISANI, Mariane da Silva. Dérbi multissituado em três atos. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.2, n.11, 2025.


 
 
 

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Rogério Biu
Apr 21
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Sensacional o q fizemos no Bar do Biu e na Arena na final . Obrigado pelo relato

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