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Foto do escritorINCT Futebol

A amarelinha é de quem? O “dessequestro” da camisa da seleção

Atualizado: 29 de nov.

Marcelo Alves de Resende

Leda Maria da Costa


O Brasil tem vivenciado um processo de normalização do discurso fascista, observado na mídia desde o filme Tropa de Elite (2007), passando por programas como o CQC, o Pânico na TV e o Superpop. Desde então, o país viu a extrema-direita chegar à presidência em 2018, com Jair Bolsonaro, e a ascenção do fenômeno político que ficou conhecido como bolsonarismo. Soma-se, a essa normalização, uma sequência de eventos políticos na década de 2010 que desgastou o Partido dos Trabalhadores, que vivia mandatos seguidos no comando da presidência desde 2003, com Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff – retirada do poder por golpe parlamentar em 2016. Entre esses eventos, estão as Jornadas de Junho (2013), as eleições de 2014, a Lava-Jato, a retirada de Lula do pleito de 2018, as manifestações populares de direita, o discurso da mídia e o processo de impeachment contra Rousseff.


Com o antipetismo instaurado no país conectado ao discurso contra a corrupção, o bolsonarismo aproveitou as manifestações de rua para amplificar suas bases e ganhar terreno com um ideal de extrema-direita. Dentre as táticas bolsonaristas para se legitimar no debate político, esteve a cooptação de símbolos nacionais, especialmente a camisa amarela da seleção brasileira masculina de futebol, usando o futebol politicamente a partir de um símbolo que representa sucesso perante o mundo com os cinco títulos conquistados desde 1958. Esse momento foi definido por Simoni Guedes e Marcio Almeida (2019) como o segundo sequestro da Canarinho – o primeiro foi na última ditadura militar.


Com o sequestro da camisa amarela, parte da população brasileira rejeitou usá-la já na Copa do Mundo de 2018, torneio que aconteceu três meses antes das eleições presidenciais daquele ano, com o receio de ser identificada como apoiadora de Jair Bolsonaro (Reis, 2021). Na Copa de 2022, disputada no Catar, em novembro, ineditamente após as eleições presidenciais, o bolsonarismo ainda era identificado com a camisa e ainda estava no poder. No entanto, um movimento passou a ser feito por jornais (como O Globo e Folha de S.Paulo), coletivos de torcida em defesa da democracia (como a Canarinhos LGBTQ+), personalidades brasileiras (como Djonga, Ludmilla e Anitta), a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e empresas fortemente ligadas ao futebol (como TV Globo, Vivo, Nike e Adidas). Esses atores passaram a instrumentalizar, cada um em seu contexto, ao menos a tentativa de retomar um símbolo que pertencia ao povo brasileiro e desvinculá-lo da extrema-direita, processo que denomino como “dessequestro”.


O fascismo ascendeu com Benedito Mussolini na Itália, na década de 1920, tendo sido derrotado na Segunda Guerra Mundial. No entanto, depois disso, o mundo vivenciou mais quatro ondas fascistas (Mudde, 2022): o neofascismo (1945-1955), o populismo de direita (1955-1980), a direita radical (1980-2000) e a extrema-direita internacional (fase atual). Para denominar fascismo e extrema-direita como sinônimos nesta discussão, são importantes a noção histórica de fascismo e as suas táticas para interditar o debate público e se favorecer dele para chegar ao poder. O bolsonarismo se insere na quarta e atual onda, surgida após um processo em que a extrema-direita se normalizou e se pré-legitimou no debate público – conforme aconteceu com Mussolini na década de 1920, na Itália. Se, a partir do pós-guerra, havia obstáculos e contestações a figuras de extrema-direita, não se pode mais afirmar o mesmo atualmente, dado o processo de normalização de vieses fascistas, populistas e neoliberais.


No século XX, a extrema-direita soube usar o esporte e o futebol para promoção de seus ideais, como aconteceu na Itália fascista, na Alemanha nazista e nas ditaduras da Argentina e do Brasil (Magalhães, 2014). Com Jair Bolsonaro, não foi diferente. Além do sequestro da amarelinha, Bolsonaro usou dezenas de camisas de clubes brasileiros, participou de cerimônias de premiação de competições nacionais e usou a imagem do Flamengo, clube de maior torcida do Brasil, para suas táticas populistas. Assim, no futebol, já a partir da Copa de 2018, na Rússia, houve conflito de sentidos em relação à camisa amarela da seleção brasileira. Mas vale recuperar que, até chegar a esse momento, os símbolos nacionalistas já vinham sendo progressivamente usados pela direita nas eleições de 2014, nos protestos a favor do impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e nas eleições de 2018. Desde então, já designavam os apoiadores de Bolsonaro, marcando o início do segundo sequestro (Guedes e Almeida, 2019). No entanto, em 2022, chegamos a outro contexto, influenciado pelas eleições presidenciais e pelo retorno de Lula ao tabuleiro político.


Lula se associa à bandeira nacional em março de 2022

Fonte: UOL (2022)


Com a produção vasta de sentidos em ano de Copa, empresas encamparam diversas campanhas publicitárias a fim de, além de criar um clima de mundial, produzir união entre os brasileiros que estavam afastados por causa da política e popularizar a camisa amarela para retirá-la do domínio bolsonarista, com  referências à favela, à diversidade étnica da população brasileira, etc. Não podemos ser ingênuos e desconsiderarmos o interesse comercial por trás da mobilização nacional por meio das narrativas empreendidas. Personalidades como Anitta, Djonga e Ludmilla também encamparam o discurso de “dessequestrar” a camisa da seleção brasileira e retirá-la do poderio bolsonarista. Em abril, a seis meses das eleições e sete da Copa do Mundo, Anitta já abordava o assunto. Um mês antes, em evento realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) com lideranças da esquerda internacional, Lula empunhou a bandeira nacional e afirmou “blusa e bandeira não são desse fascista” (UOL, 2022). Como representante da esquerda, Lula associa-se aos símbolos nacionais e cria a narrativa de dissociá-los da exclusividade da extrema-direita.


X, 11 de set. 2022

Fonte: Ludmilla (2022)


Nike Futebol apresenta: Veste a Garra

Fonte: Nike (2022)


Campanha da Adidas para a Copa de 2022

Fonte: Luva de Pedreiro (2022)


O Globo e Folha de S.Paulo, principais jornais do país, debateram a politização da amarelinha intensamente durante a Copa de 2022. Produziram narrativas midiáticas, com técnicas do jornalismo, para conquistar audiência na cobertura do torneio, a partir de seção de leitores, artigos, charges e reportagens. Com as vitórias nas duas rodadas iniciais do mundial, por exemplo, os periódicos criaram um discurso de que a amarelinha havia sido retomada e que torcedores que estavam reticentes em usar a camisa do Brasil haviam cedido diante dos jogos. Ambos os veículos usaram as imagens de Richarlison e Neymar para pô-los em campos políticos opostos: o primeiro, ligado a causas progressistas, o segundo, apoiador declarado de Bolsonaro.


O Globo, Segundo Caderno, p. 3 – 22 de nov. 2022

Fonte: Aguiar (2022)


Folha de S.Paulo, p. C6 – 22 de nov. 2022

Fonte: Langona (2022)


Folha de S.Paulo, p. C6 – 27 de nov. 2022

Fonte: Galvão (2022)


O futebol havia popularizado a canarinho durante os títulos mundiais no século XX. Desse modo, se houve o segundo sequestro, podemos entender, a partir deste trabalho, que existe a possibilidade do segundo “dessequestro” – tendo o primeiro ocorrido após a sociedade brasileira recuperá-la da última ditadura militar, que controlava o uso dos símbolos nacionais. Por que a possibilidade? Porque consideramos cedo demais para concluir que aconteceu o “dessequestro” da canarinho e dos demais símbolos nacionais na sociedade brasileira, ficando, por enquanto, apenas uma tentativa – principalmente após a saída de Jair Bolsonaro da presidência. Um exemplo foi o atentado golpista de 8 de janeiro de 2023, quando milhares de bolsonaristas formaram um mar verde e amarelo e destruíram a sede dos três poderes em Brasília, numa tentativa de reconduzir, por meio de um golpe militar, Jair Bolsonaro ao comando do país.


Referências:

AGUIAR, José. Nada com coisa alguma. O Globo, Rio de Janeiro, p. 3, 22 de nov. 2022.


GALVÃO, Jean Figurinhas. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. C6, 27 de nov. 2022.


GUEDES, Simoni Lahud; ALMEIDA, Edilson Márcio. O segundo sequestro do verde e amarelo: futebol, política e símbolos nacionais. Cuadernos de Aletheia. La Plata, n. 3, 2019.


LANGONA, Fabiane. Viver dói. Folha de S.Paulo, São Paulo, p. C6, 22 de nov. 2022.


LUDMILLA. O resgate da nossa bandeira e do orgulho de ser brasileiro. 2022.

Disponível em: <https://twitter.com/Ludmilla/status/1569130083260190721?ref_src=twsrc%5Etfw>. Acesso em: 25 de jan. 2024.


LUVA DE PEDREIRO.  Campanha da Adidas para a Copa de 2022. 2022. Disponível em: <https://encurtador.com.br/irFOQ>. Acesso em: 6 de jan. 2024.


MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos: sociedade, Copa do Mundo   e ditadura no Brasil e na Argentina. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.


MUDDE, Cas. A extrema-direita hoje. Tradução de João Marcos E. D. de Souza. 1 ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022.


NIKE. Veste a garra. 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=DFR6j5GN51k>. Acesso em: 19 de jan. 2024.


REIS, Mattheus. Amarelo desbotado: crise e sequestro da camisa da seleção brasileira  

de futebol. Ebook: 2021.


UOL. “Papel dos militares não é puxar saco do Bolsonaro”, diz Lula. 2022. Disponível em: <https://www.uol.com.br/eleicoes/2022/03/30/papel-dos-militares-nao-e-puxar-saco-do- bolsonaro-diz-lula.htm>. Acesso em: 25 de jan. 2024.


Sobre os autores:

Marcelo Alves de Resende é doutorando e mestre em Comunicação pelo PPGCom da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: mar.marceloresende@gmail.com.


Leda Maria da Costa é doutora em Literatura Comparada e mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Integra o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte, da Universidade Federal Fluminense (NEPESS-UFF), o Laboratório de História do Esporte e do Lazer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Sport-UFRJ), o Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LEME-UERJ), e o Observatório Social do Futebol da UERJ. É editora-chefe da Revista Esporte e Sociedade.


Este texto é uma adaptação da apresentação realizada pelos autores no I Encontro INCT Estudos do Futebol Brasileiro, realizado de 5 a 7 de agosto de 2024, em Florianópolis.


Como citar:

RESENDE, Marcelo. COSTA, Leda Maria. A amarelinha é de quem? O “dessequestro” da camisa da seleção. Bate-pronto, INCTFUTEBOL, Florianópolis, V.1, n.29, 2024.

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